"Penso em desistir todos os dias": Talíria Petrone fala sobre ameaças e impactos da violência política de gênero no mandato de mulheres

Deputada teve que deixar o Rio após novas ameaças a sua vida; especialistas ouvidas por CELINA explicam o que é a violência política de gênero e como ela impacta o exercício das mulheres nos espaços políticos institucionais.

A deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ), em sessão da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, em novembro de 2019 - Foto: Pedro Valadares / Câmara dos Deputados

À medida que cresce a participação das mulheres nos espaços políticos institucionais, também cresce a reação a essa mudança: mulheres que entram para a política precisam lidar com diversos ataques, ameaças e tentativas de deslegitimação, que acabam tornando o custo de escolher esse caminho muito alto e tem como objetivo preservar a histórica dominação masculina sobre esses espaços. Esse fenômeno é chamado de violência política de gênero.

 

— A violência política de gênero é toda ação que tenha como objetivo impedir o ingresso ou exercício das mulheres na política e pode ocorrer antes, durante ou depois do período eleitoral — define Roberta Eugênio, pesquisadora do Instituto Alziras.

 

Não é de hoje que deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ) convive com esse tipo de violência. Ela é percebida pela parlamentar desde o seu primeiro ano como vereadora de Niterói, cargo que exerceu entre os anos de 2017 e 2019. No início, os ataques eram verbais e nas redes sociais. À medida que o tempo foi passando e a disputa política no Brasil se acirrando, a violência se intensificou com injúrias raciais e ameaças à vida. Mãe da pequena Moana Mayalú, de quase cinco meses, a deputada de 35 anos conta que, durante a gestação, chegou a sofrer ataques endereçados a sua maternidade, em que os agressores sugeriam que ela, defensora do direito ao aborto, abortasse a filha.

 

— Dentro do Congresso, já ouvi ataques racistas como “volta para a senzala”, “negra nojenta” e “volta para a favela”. Também já fui cantada dentro do plenário. Hoje, presencio o momento mais difícil da minha trajetória, com a ampliação do nível de risco a contra a minha vida — conta a deputada, que teve que deixar o Rio de Janeiro para garantir sua segurança após ser notificada do conteúdo de mensagens de áudio que chegaram por meio do Disque Denúncia Rio, em que ela é ameaçada de morte.

 

As ameaças mais recentes, feitas com riqueza de detalhes, fizeram com que, em setembro, Petrone acionasse a Organização das Nações Unidas (ONU). A denúncia da parlamentar pedia a ONU explicações do governo brasileiro sobre o seu caso e sobre o assassinato de Marielle Franco, além de solicitar um plano para agir contra a violência política de gênero no Brasil.

 

— Quando uma mulher eleita é ameaçada de morte, essa atitude limita o exercício pleno do mandato. Se antes eu podia circular livremente, agora preciso andar em um carro blindado e estou morando em outro estado. A violência política de gênero torna inviável o mandato de mulheres negras — diz.

 
Formas de violência

A violência política de gênero pode se manifestar de diversas formas, e não só na agressão física ou sexual. Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e autora de “Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil”, afirma que ela também pode ser psicológica, simbólica e econômica.

 

— Quando há restrição ao suporte econômico das mulheres, como no caso brasileiro, com denúncias de candidaturas laranjas, percebemos que existe, junto com a violência econômica, também a ameaça e o assédio, porque ela está ligada a ilegalidade — afirma a pesquisadora.

 

— Na rede existe a violência simbólica, mas qual o limite? As organizadoras do movimento “Ele Não” em 2018, por exemplo, sofreram violência na internet em forma de ameaças, que chegaram a seus celulares. Mas uma também foi surpreendida em casa e agredida. Esse limite entre uma coisa e outra nem sempre é claro, há uma continuidade — afirma a professora, explicando que a violência simbólica também tende a ser mais difusa:

 

— Pode estar presente na mídia, quando se expõe a vida sexual de mulheres de maneira diferente que a dos homens, por exemplo.

 

Biroli ressalta que a violência política de gênero tem se manifestado muito por meio das redes sociais, atingindo principalmente mulheres mais jovens, algo que tem causado preocupação.

 

É o caso da candidata ao cargo de vereadora no município do Rio de Janeiro, Letícia Arsênio, de 25 anos, do partido Novo. Ela, que está estreando na corrida eleitoral, desabafa que o ambiente político é mais difícil para as mulheres:

 

— Os desafios e preconceitos que sofri foram relacionados a minha idade e por ser mulher. Já fui deslegitimada por ser uma jovem na política e já ouvi “que era uma menina ignorante na área”. Infelizmente, têm homens que enxergam as mulheres de maneira muito atrasada e sexista. Nas redes sociais, já recebi mensagens de caras (sic) dizendo que votariam em mim se eu saísse com eles e também imagens não solicitadas de suas partes íntimas — relata.

Letícia Arsênio, de 25 anos, do NOVO - Foto: Arquivo Pessoal
‘Não serei interrompida’

Outra forma de violência política de gênero é o silenciamento. Roberta Eugênio, pesquisadora do Instituto Alziras, cita um estudo realizado pela professora Flávia Biroli nos anos 2000, que mostrou que as mulheres entram no parlamento falando mais e saem falando menos, mas com os homens, ocorre justamente o contrário. Ela menciona também o marcante discurso de Marielle Franco, em que ela declara: “Não serei interrompida.”

 

— Essa prática de minar a atividade do parlar, de apresentar projetos e de participar do debate político como deveria ser, é mais gravosa quando se volta para as mulheres — afirma.

 

Biroli também destaca o caso da vereadora, assassinada em março de 2018:

 

— Ela foi assassinada como mulher negra, mas também podemos dizer que foi alvo por expor criticamente a violência contra a população negra na periferia do Rio, no momento da ocupação militar. Mostra que, quando as mulheres estão atuando politicamente em situações de conflito, o padrão dessa violência pode mudar, se tornar mais extrema — diz.

 

A professora também aponta que o caso de Marielle representa como nos países em que a extrema-direita tem ganhado espaço, há uma atuação para normalizar a violência — principalmente a misoginia nas redes, mas também as expressões mais extremas — e isso muitas vezes é feito por meio da espetacularização.

 

— Depois do assassinato, teve toda uma atuação para desinformar sobre quem era ela e tentativas reduzir a reação a sua morte. Passados alguns meses, no período eleitoral, teve o episódio da quebra das placas, o uso político da violência em favor de Wilson Witzel e dois candidatos a deputados, que foram eleitos depois — lembra Biroli.

 

Eugênio também destaca que a violência de gênero vem sendo usada nos últimos anos por candidatos como “marketing político”.

 

— Ela não apenas retira mulheres da política, como também coloca homens que utilizam práticas violentas para construírem suas candidaturas, o que reforça essas práticas dentro do imaginário — explica.

 
Gênero e raça

A pesquisadora destaca que esse tipo de violência ocorre pelo gênero, mas não apenas. A interseccionalidade das estruturas de opressão vai determinar experiências específicas para as mulheres em sua diversidade, ela explica.

 

— Mulheres negras passam por tipos de violência específicos, assim como mulheres trans, indígenas, lésbicas. Essa observação é importante, porque ela não se dá de forma igual para todas — afirma Eugênio.

 

A deputada Talíria Petrone é categórica ao dizer que apesar de as mulheres negras serem 28% da população brasileira, a política atualmente não é um lugar para elas.

 

— A mulher, mãe e negra tem ainda menos lugar na política. É ainda mais desafiador ocupar o centro das discussões — diz a deputada, destacando que, desde 2018, a Frente Feminista Antirracista atua para contribuir para a mudança desse cenário.

 

— Penso em desistir da política todos dias, mas não é uma opção. Minha vida poderia estar mais tranquila se eu não fosse um corpo no parlamento. Quando eu penso no crime não resolvido da Marielle e em como a violência afeta as mulheres, sobretudo negras, ocupar espaços é a única alternativa. O recado que eu dou é que vou avançar.

 

Biroli acrescenta que os ataques têm atingido muito as mulheres ativistas de Direitos Humanos e feministas, e também inclui as jornalistas que cobrem política como alvos de agressões que podem ser enquadradas no conceito.

 

As especialistas ressaltam que todas as mulheres, de diferentes espectros políticos, estão sujeitas a sofrer violência política de gênero. Elas citam a deputada Joice Hasselmann (PSL), que ano passado foi alvo de xingamentos nas redes sociais e recebeu até mesmo ameaça aos filhos.

 

— Vemos que há um padrão na violência vinda da extrema-direita, mas não significa que só as mulheres de oposição ou de esquerda vão ser alvos. O caso da Joice mostra que, quando ela entrou em conflito com o grupo do qual fazia parte, recebeu essa mesma violência muito característica da qual estamos falando — afirma Biroli.

 

Eugênio avalia que inexistem experiências de mulheres na política que não envolvam a marca da violência de gênero. Outros casos marcantes mencionados são o da Manuela D’ávila, interrompida 62 vezes em uma entrevista durante campanha presidencial de 2018 e que este ano tem sido alvo de ataques nas redes sociais, e o da ex-presidente Dilma Rousseff, que sofreu muitas críticas relacionadas a questões de gênero.

 

Ela lembra que, na última pesquisa do Instituto Alziras, “Perfil das Prefeitas no Brasil”, a violência e o assédio apareceram em terceiro lugar na lista de principais barreiras para as mulheres ingressarem ou permanecerem na política mencionadas pelas entrevistadas.

 

— As primeiras eram falta de recursos para campanhas e menor tempo nas propagandas de televisão, que também podem ser compreendidas como violência institucional — diz a pesquisadora.

 
Legislação

Biroli destaca que vários países da América Latina têm legislações que coíbem a violência política de gênero, como a Bolívia, Argentina, Peru e México. Ela defende que a existência de uma legislação pode ser importante para atuar contra naturalização e permitir a punição de agentes dessa violência.

 

— Mas a lei sozinha não vai resolver o problema. É preciso ação dos partidos políticos, da justiça eleitoral, regulação da desinformação e debate público sobre o tema — defende a professora da UnB — Esse problema não é individual, é uma questão coletiva que atinge a democracia no seu coração, que é a garantia de igual participação.

 

Eugênio também é a favor de uma punição para esses atos. Ela afirma que a sociedade civil vem trazendo algumas respostas através da investigação de dados, mas que ainda há certa inação do Estado.

Fonte – O Globo – Celina