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Fidelidade partidária e as hipóteses de justa causa para desfiliação

por Luiz Fernando Neto SilvaNota 01

 

Inicialmente destaca-se que a filiação partidária é requisito de elegibilidade previsto na CF/88 no art. 14, §3°, V, sendo necessária para o exercício da capacidade eleitoral passiva (ser votado).

Neste sentido, a fidelidade partidária merece especial atenção diante do sistema para definição dos eleitos adotado no Brasil, principalmente o sistema proporcional, na qual o parlamentar normalmente precisa dos votos dos demais membros do partido para a formação do quociente partidário e consequentemente ter acesso a uma cadeira.

A fidelidade partidária de maneira explícita, veio inicialmente prevista na Emenda Constitucional n° 01/69, por meio do art. 152, parágrafo único, que alterou a Constituição de 1967, sendo posteriormente suprimida pela Emenda Constitucional n° 25/85.

Quando da elaboração da CF/88 o art. 17 previa a autonomia dos partidos para estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária, mas sem nenhuma previsão de perda de mandato para quem mudasse ou se desfiliasse do partido pelo qual foi eleito.

Tal entendimento foi reforçado pelo mandado de segurança 20927/DF julgado pelo STF em 1989, diante do silêncio da lei e da própria Constituição, com a fundamentação de que o mandato eletivo pertenceria ao parlamentar e não ao partido, estendendo, inclusive, a possibilidade de mudança de partido para os suplentes.

Somente em 2007, com o julgamento dos mandados de segurança 26602, 26603 e 26604 é que o STF, novamente se debruçando sobre o tema, entende que o mandato eletivo pertence à agremiação partidária e não ao eleito, estabelecendo a perda do mandato eletivo para quem se desfiliasse e não se enquadrasse na justa causa para desfiliação.

Ainda em 2007, o TSE utilizando-se de seu poder regulamentar editou a Resolução n° 22.610 disciplinando o processo de perda de cargo eletivo em casos de infidelidade partidária, bem como estabelecendo hipóteses de justa causa para a desfiliação partidária (art. 1, § 1°).

Em 2015, em revisitação do tema, o STF na ADI 5081 de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso entendeu pela inaplicabilidade da perda de mandato eletivo por infidelidade partidária no âmbito do sistema majoritário, na qual a figura principal é o candidato e não o partido, pois isso frustraria "a vontade do eleitor e vulnera a soberania popular".

No mesmo ano de 2015 foi sancionada a Lei nº 13.165 que incluiu o art. 22-A na Lei nº 9.096 (Lei dos partidos políticos) estabelecendo hipóteses de justa causa, são elas:

"Art. 22-A. Perderá o mandato o detentor de cargo eletivo que se desfiliar, sem justa causa, do partido pelo qual foi eleito.

Parágrafo único. Consideram-se justa causa para a desfiliação partidária somente as seguintes hipóteses:

I - mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário;

II - grave discriminação política pessoal; e

III - mudança de partido efetuada durante o período de trinta dias que antecede o prazo de filiação exigido em lei para concorrer à eleição, majoritária ou proporcional, ao término do mandato vigente."

Importante destacar na retromencionada lei a exclusão de duas hipóteses anteriormente aceitas para o reconhecimento de justa causa: incorporação ou fusão do partido e criação de novo partido.

No ano de 2017 com o advento da Emenda Constitucional n° 97/17, na qual foi instituída a chamada "cláusula de desempenho" (requisitos para que os partidos tenham acesso à recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão), detalhada nos incisos I e II do § 3°do art. 17 da CF/88, incluindo uma nova hipótese de justa causa para mudança de partido (art. 17, §5° da CF/88).

Por meio da citada emenda foi garantida aos parlamentares que tenham sido eleitos por partidos que não atingissem a cláusula de desempenho que mantivessem o mandato caso optassem pela filiação a outro partido que a tenha atingido, ressalvando, porém, que a nova filiação não seria considerada para fins de distribuição dos recursos do fundo partidário e de acesso gratuito ao tempo de rádio e de televisão do novo partido.

Além dos citados dispositivos legais e constitucionais de justa causa, diversos precedentes julgados pelos tribunais eleitorais acatavain mais uma hipótese: a carta de anuência concedida pelos partidos políticos aos detentores de mandato eletivo.

Mas foi somente em 2021 que o Congresso Nacional, ao promulgar a emenda constitucional 111, incluiu oficialmente a carta de anuência como hipótese de justa causa, prevista no art. 17, § 6° da CF/88 com a seguinte redação:

§ 6° Os Deputados Federais, os Deputados Estaduais, os Deputados Distritais e os Vereadores que se desligarem do partido pelo qual tenham sido eleitos perderão o mandato, salvo nos casos de anuência do partido ou de outras hipóteses de justa causa estabelecidas em lei, não computada, em qualquer caso, a migração de partido para fins de distribuição de recursos do fundo partidário ou de outros fundos públicos e de acesso gratuito ao rádio e à televisão.

Ainda em 2021, mesmo posterior à promulgação da EC 111/21 o TSE analisando a possibilidade de concessão da carta de anuência ao julgar a petição 0600482- 26.2019.6.00.0000 entendeu que, a partir de 2018, a carta de anuência de partido político, por si só, não constituiria justa causa para desfiliação, ocasionando a perda do mandato eletivo do parlamentar o qual se desfiliasse utilizando-se da mencionada anuência.

Após o referido julgamento foram opostos embargos de declaração acolhidos por maioria no TSE, considerando-se válida a carta de anuência mesmo que concedida em período anterior à promulgação da citada EC, ensejando a oposição de novos embargos, desta vez pelo suplente, autor do pedido de decretação de perda de mandato eletivo por infidelidade partidária, defendendo a inaplicação da alteração Constituição para períodos anteriores a promulgação da mesma, visto que ausente tal previsão no texto legal.

Para além das discussões jurídicas sobre a contemporaneidade ou não da carta de anuência face a EC 111/21, importante questão a ser observada é sobre a competência para a edição das mencionadas cartas de anuência.

Pode parecer simples se analisarmos o princípio da autonomia partidária previsto no art. 17, § 1° da CF/88, mas a prática demonstra-se muito mais complexa do que a teoria e a trivial análise do dispositivo constitucional.

Em uma análise perfunctória, caberia aos partidos estabelecerem as regras para a edição da carta de anuência, mas a problemática surge quando verificada a ausência de regras internas para tal concessão, o que tem feito a justiça eleitoral suprir a omissão por meio de decisões judiciais.

Insurge como ponto de discussão os casos em que o órgão partidário superior (estadual e/ou nacional) discorda da referida anuência ou mesmo estabeleceu regras que impedem a concessão da anuência por parte do órgão partidário inferior, bem como se durante o decorrer do processo judicial, o órgão partidário superior criar ou alterar as regras para a concessão da anuência.

O imbróglio jurídico aumenta quando observa-se que na atual jurisprudência a competência para julgar conflitos entre órgãos partidários quando não influenciem diretamente no processo eleitoral é da justiça comum, que em geral é muito mais morosa que a justiça eleitoral na análise de demandas judiciais, levando a possibilidade de após a decisão da justiça eleitoral, seja no deferimento de tutela de urgência, seja na análise meritória, a justiça comum invalidar a carta de anuência fazendo-se necessária uma nova análise por parte da justiça eleitoral.

Diante disso, ficam as reflexões: O que aconteceria com o(a) parlamentar que mudou de partido usando da carta de anuência e baseando-se em decisões da justiça eleitoral e que posteriormente teve a carta de anuência invalidade pela justiça comum? Teria incorrido em infidelidade partidária apta a ensejar a perda do mandato eletivo?

Uma possível diminuição das dificuldades aqui apontadas viria com a aprovação do art. 81 do projeto de Lei Complementar 112 de 2021 (novo Código Eleitoral), já aprovado pela Câmara e em análise pelo Senado Federal, que fixa como competência da justiça eleitoral "(...) conhecer e julgar as ações que versem sobre os conflitos intrapartidários, entre o partido político e os seus filiados ou órgãos e entre órgãos da mesma agremiação, ainda que não influenciem diretamente o processo eleitoral", fazendo com que as discussões concentrem-se na justiça especializada.

É evidente que até a aprovação do novo Código Eleitoral e mesmo após, tais questionamento chegarão ao poder judiciário o que certamente levará a um grande esforço para resolvê-los, ocasionando um amplo debate no âmbito do direito eleitoral e partidário a qual deve-se acompanhar de modo circunspecto.

 

 

Nota 01 Advogado. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Pós-Graduando em Direito Público pelo CERS/Estácio de Sá (2017-2018). Membro da Comissão de Direito Político e Eleitoral da OAB-Goiás. E-mail:luizfns.advogado@gmail.com