Verba Legis 2021

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O registro fotográfico do voto pelo próprio eleitor e a (não) configuração do crime previsto no art. 312 do Código Eleitoral. Uma visão doutrinária e jurisprudencial dos Tribunais Regionais Eleitorais brasileiros

por Márcio Antônio de Sousa Moraes JúniorNota 01

 

O uso de celulares tem sido cada vez mais intensificado ao longo dos últimos anos. O volume de venda de aparelhos inteligentes (smartphones) no Brasil nos coloca entre os cinco países com a maior difusão de celulares no mundo, com crescimento significativo no segundo trimestre de em comparação com o mesmo período do ano anterior: aumento de 1,3%, com 10,8 milhões de unidades vendidasNota 02.

Aliás, o Relatório Anual de Uso de TI da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio VargasNota 03 (FGV-EAESP), divulgado em , revelou que os brasileiros possuem, em média, mais de um aparelho por habitante no Brasil. Ao todo, são 234 milhões de smartphones.

Com os aparelhos cada vez mais inteligentes, proporcionando uma comunicação mais ágil e uma maior sofisticação de ferramentas de interação, os smartphones se tornaram item pessoal indispensável, estando colado ao corpo a todo momento e conectado às plataformas sociais a todo segundo.

E justamente o uso desse item tem gerado grandes polêmicas no momento do voto, inclusive com casos de multa, instaurações de ações penais e até prisão do eleitor, contudo este entendimento não se mostra pacificado nos Tribunais Regionais Eleitorais do país.

Extrai-se da vigente Constituição da República, em seu art. 14, que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, porém nem sempre foi assim, tendo o processo de votação passado por diversas transformações.

Nos termos da primeira lei eleitoral (), editada após a Independência, os votantes depositavam na urna um pedaço de papel, conhecido como “relação”, com os nomes e as respectivas profissões do candidato, que traziam pronto, já que os nomes dos candidatos não eram escritos no local de votação. Exigia-se que a relação fosse assinada pelo votante, que também podia enviar seu voto por intermédio de outro.

A partir de , as cédulas deixaram de ser assinadas, tendo sido abolido o voto por procuração. O sigilo do voto foi introduzido pela lei de , pois os votantes depositavam na urna a cédula, que devia estar fechada por todos os lados. O voto teria que ser escrito em papel branco ou anilado, não devendo ser transparente, ter marca, sinal ou numeração. A cédula, fechada por todos os lados e com o rótulo do cargo em disputa, era colocada em envelope fechado e depositada na urna.

Durante a Primeira República, o processo de votação praticamente não foi alterado. Pela lei de , a cédula deveria ser colocada em invólucro fechado, que não podia conter nenhum distintivo, utilizando-se uma cédula para cada cargo em disputa. Era comum a distribuição de cédulas pelos cabos eleitorais, no dia da eleição. Observe-se, no entanto, que, embora mantido o escrutínio secreto, a lei de 1904 criou um mecanismo que o violava, ou seja, o eleitor apresentava duas cédulas, que deviam ser assinadas perante a mesa eleitoral, sendo uma depositada na urna e a outra ficava em poder do eleitor, o que possibilitava às lideranças partidárias o controle do seu voto. Emerson Garcia ressalta que:

“Um dos instrumentos mais deploráveis utilizados durante a Primeira República foi o denominado “voto a descoberto”, assim detalhado pela Lei nº 426, de , verbis: “Art. 8º - Será lícito a qualquer eleitor votar por voto descoberto, não podendo a mesa recusar-se a aceitá-lo. Parágrafo único. O voto descoberto será dado, apresentando o eleitor duas cédulas, que assinará perante a mesa, uma das quais será depositada na urna e a outra lhe será restituída depois de datada e rubricada pela mesa e pelos fiscais”. Essa forma de voto foi mantida pelo art. 57 da Lei Rosa e Silva (Lei nº 1.269, de ), que revogou a legislação eleitoral anterior. Costumava-se dizer que as eleições, nesse período, eram feitas “a bico de pena”, indicativo de que o resultado era sempre o desejado pelas aristocracias locais, sem olvidar que nem sempre correspondia à contagem dos votos.”Nota 04

Com o advento do Código Eleitoral de , e a criação da Justiça Eleitoral, o sigilo do voto foi aperfeiçoado com duas medidas: a) a obrigatoriedade do uso de sobrecarta (envelope) oficial, uniforme e opaca, numerada e rubricada pelos membros da mesa eleitoral, na qual os eleitores deveriam inserir a cédula eleitoral, e, b) a introdução de um lugar indevassável, cuja porta ou cortina deveriam estar fechadas, onde o eleitor pudesse colocar a cédula no envelope oficial.

Apesar da evolução quanto a sigilosidade, as mudanças ainda pendiam de maior segurança, pois, como bem apontado por Kildare Carvalho:

“Como a legislação permitia que as cédulas confeccionadas pelos partidos políticos e candidatos ficassem na cabine de votação, aqueles mais estruturados, que distribuíam as cédulas por todos os Municípios, eram beneficiados, facilitando-se ainda a coação dos eleitores pelos cabos eleitorais. Em (eleições para Presidente e Vice-Presidente da República) adotou-se a cédula oficial, que passou a ser confeccionada e distribuída pela Justiça Eleitoral. A partir de então os eleitores passaram a ter que preencher a cédula na seção eleitoral. Em , a cédula oficial foi utilizada nas eleições para a Câmara dos Deputados, Senado Federal e Assembleias Legislativas. Chegou-se então à urna eletrônica, utilizada pela primeira vez nas eleições municipais de em 57 Municípios (capitais e cidades com mais de 200 mil eleitores). Nas eleições de a urna eletrônica passou a ser utilizada em 537 Municípios e, por fim, nas eleições de foi utilizada por todos os eleitores.”Nota 05

A preocupação quanto à garantia da manutenção do segredo quanto a manifestação do eleitor se mostrou tamanha que, em , o Código Eleitoral previu como crime “violar ou tentar violar o sigilo do voto”Nota 06. Vige, assim, no sistema eleitoral pátrio que o voto é livre e secreto e, mesmo a tentativa de violação desse sigilo, se mostra criminosa.

Sobre esses aspectos, Gilmar Mendes leciona que:

“O voto secreto é inseparável da ideia do voto livre.

A ninguém é dado o direito de interferir na liberdade de escolha do eleitor. A liberdade do voto envolve não só o próprio processo de votação, mas também as fases que a precedem, inclusive relativas à escolha de candidatos e partidos em número suficiente para oferecer alternativas aos eleitores.

Tendo em vista reforçar essa liberdade, enfatiza -se o caráter secreto do voto. Ninguém poderá saber, contra a vontade do eleitor, em quem ele votou, vota ou pretende votar.

O caráter livre e secreto do voto impõe-se não só em face do Poder Público, mas também das pessoas privadas em geral. Com base no direito alemão, Pieroth e Schlink falam da eficácia desse direito não só em relação ao Poder Público, mas também em relação a entes privados (eficácia privada dos direitos: Drittwirkung).

A preservação do voto livre e secreto obriga o Estado a tomar inúmeras medidas com o objetivo de oferecer as garantias adequadas ao eleitor, de forma imediata, e ao próprio processo democrático.” Nota 07

Em entendimento mais rígido, Alexandre de Moraes defende que a sigilosidade do voto alcança, inclusive, o próprio eleitor, ao afirmar que “o segredo do voto consiste em que não deve ser revelado nem por seu autor nem por terceiro fraudulentamente”.Nota 08

Entretanto, pertinente a diferenciação feita por Leonardo de Bem e Mariana Cunha quanto aos atos de “votar” com a conduta de “divulgar o voto”:

“É importante diferenciar o ato de votar da declaração do eleitor. Uma pessoa não pode acompanhar o eleitor na cabine de votação, nem mesmo com a sua anuência, pois incidiria nas penas do presente preceito [art. 312/CE]. Em contrapartida, o eleitor tem a liberdade para declarar suas preferências políticas, inclusive depois de votar. Consigne-se, apenas, que o declarado pode não corresponder ao voto depositado na urna.”Nota 09

Ante essas considerações, resta averiguar, à luz da doutrina e jurisprudência eleitoral nacional, se o ato do eleitor de fotografar ou filmar seu próprio voto se enquadra, ou não, na conduta típica prevista no art. 312 do Código Eleitoral.

Parte da doutrina, referendada por alguns de julgados, criminalizam a conduta praticada pelo próprio eleitor, valendo-se de preceitos e princípios constitucionais no sentido de que, tratando-se de garantia constitucional, a inviolabilidade do voto há de ser assegurada pelo Estado e por todos os cidadãos, concluindo que a violação do sigilo de voto é um crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa, inclusive pelo próprio votante.

Suzana GomesNota 10, sobre o tipo penal em questão, explica que:

“A liberdade do direito do voto tem uma de suas expressões, em razão de o ordenamento jurídico resguardar o sigilo da manifestação de vontade do eleitor, quando da realização das eleições. E que se não estivesse o voto revestido de sigilo, estaria o eleitor, com maior vigor, sujeito as injunções e influências de toda sorte, restando desvirtuada, assim, a verdade da escolha que o voto deve exprimir.

E, por isso, que a Constituição Federal, em seu art. 14, assegura que o voto é secreto, além de que o art. 312 do Código Eleitoral considera crime a conduta daquele que "violar ou tentar violar o sigilo do voto".

Assim, toda atitude tendente a quebrar o sigilo do voto, a violar o segredo de que deve se revestir, constitui o crime em consideração.

(...)

E de se questionar, no entanto, a hipótese de o sigilo de voto ser quebrado, com a aquiescência do eleitor se, ainda assim, estaria configurado o crime em consideração.

Ora, conforme já enfatizado o voto é secreto por força de preceito constitucional, além de que o seu exercício não representa simplesmente um direito individual, de natureza subjetiva, do eleitor, mas reveste-se de função social. Assim, considerado sob o prisma da relevância social do voto, dado que é a partir de manifestação isolada de cada eleitor, que, somada, é possível aferir-se a vontade popular, necessária para determinar as escolhas democráticas, tem-se que, no momento da votação, todas as cautelas devem ser tomadas no sentido de ser preservada a manifestação de vontade daquele que vota, no que concerne ao seu sigilo.

Desta forma, não devem os membros da mesa receptora nem mesmo permitir venha o eleitor a mostrar o conteúdo de seu voto, posto que essa fase é a de votação, onde deve ser resguardado o sigilo. Assim, incorreriam no crime em questão os membros da mesa receptora que permitissem, facultassem conscientemente, a quebra do sigilo do voto, mesmo que para tanto aquiescesse o eleitor.”

Esse entendimento encontrou amparo em decisões das Cortes Eleitorais dos Estados do Espírito Santos (Recurso Criminal nº 000004179), Paraná (Recurso Criminal nº 13738) e mais recentemente de Goiás (Recurso Criminal nº 060001322):

ELEIÇÕES . RECURSO ELEITORAL. CRIME ELEITORAL. DOCUMENTAR O PRÓPRIO VOTO COLHIDO NA URNA ELETRÔNICA. FOTOGRAFAR A URNA NO MOMENTO DA VOTAÇÃO. VIOLAÇÃO DO SIGILO DO VOTO. TIPICIDADE DA CONDUTA. ART. 312 DO CÓDIGO ELEITORAL. CRIME COMUM. BEM JURÍDICO TUTELADO: O SIGILO DO VOTO E SUA LIBERDADE. DUPLA SUBJETIVIDADE PASSIVA: O ESTADO E O REGIME DEMOCRÁTICO. ATINGE-SE A LISURA DO PROCESSO ELEITORAL DE VOTAÇÃO. PRECEITO FUNDAMENTAL. ART. 14, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CLÁUSULA PÉTREA. PROPICIA O RETORNO DO VOTO DE CABRESTO, A COAÇÃO E A CORRUPÇÃO ELEITORAL. ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. PROVIMENTO.

(...)

7. A infração cível-eleitoral expressa no art. 91-A da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, não exclui o delito previsto no art. 312 do Código Eleitoral, assim como, v.g, a Captação de Sufrágio prevista no art. 41-A da Lei das Eleições não inviabiliza o reconhecimento da prática do crime de Corrupção Eleitoral, capitulado no art. 299 do Código Eleitoral, ou seja, eventual prática de infração de natureza cível não exclui o crime eventualmente praticado. 8. No caso dos autos, diante da proteção constitucional conferida ao voto secreto, reafirmada em recentes julgados do STF (ADI 4543 e 5889), afirma-se que é vedado a qualquer pessoal, inclusive ao próprio eleitor, registrar documentalmente a votação lançada na urna eletrônica, não podendo, naturalmente, fotografar seu voto. A defesa do sigilo do voto não assegura apenas o direito ao sigilo daquele eleitor que pretende revelar o seu voto, mas de tantos quantos potencialmente se tornariam vulneráveis à coação, diante da possibilidade de se trazer o voto de cabresto aos dias atuais. O voto secreto é um poder-dever de cada eleitor. Entender de modo diverso potencializa um contexto que favorece a coação e a corrupção eleitoral (art. 299 do Código Eleitoral), sem contar a possibilidade de nulidade da votação (art. 220, IV, do Código Eleitoral). Contudo, não se está a dizer que o eleitor não poderia, sequer, falar o seu voto ou comentar a intenção de votar em certo candidato. A manifestação da intenção de votar em determinado candidato não deve ser confundida com o registro documental da votação. Assegura-se, portanto, que o eleitor poderá dizer que votou neste ou naquele candidato, ao ser questionado por quem quer que seja, sem, contudo, que seja revelada a votação colhida pela urna eletrônica. 9. A avaliação que se faz é de que o registro documental do voto viola direito fundamental do sigilo assegurado pela Constituição Federal, conquista inconcebível de retroação. Assim, consentir que o próprio eleitor faça o registro de sua votação (fotografar no interior da cabine) representa ameaça à livre escolha do eleitorado como um todo, colocando em risco a probidade e a lisura do processo eleitoral, por fim, da democracia, a qual exige mecanismos que garantam a plena efetividade de liberdade de escolha dos eleitores no momento da votação. 10. Sentença que decretou a absolvição sumária do acusado cassada, a fim de determinar o retorno dos autos à instância de origem para regular processamento. 11. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (RECURSO CRIMINAL nº 060001322, Acórdão, Relator(a) Des. Luiz Eduardo de Sousa, Publicação: DJE - DJE, Tomo 38, Data , Página 0)

Todavia, o posicionamento majoritário da doutrina é no sentido oposto, qual seja, de considerar como atípica a conduta do eleitor. Aliás, essa é a clara lição de José Jairo Gomes quando da análise do art. 312 do Código Eleitoral:

“O objeto jurídico do presente dispositivo é a proteção do segredo do voto. No ordenamento brasileiro, o voto é sigiloso. O seu sentido não pode ser devassado por ninguém, tampouco revelado pelos órgãos da Justiça Eleitoral que controlam o processo de votação e apuração dos votos. (...)

O delito em exame é comum, porque não exige que o agente ostente qualquer qualidade especial; de sorte que pode ser cometido por qualquer pessoa. Observe-se, porém, que o segredo protegido pelo dispositivo enfocado constitui direito subjetivo público do eleitor. Querendo, ele poderá, a qualquer tempo, revelar seu próprio voto descortinar suas preferências políticas. Para o eleitor, a conduta aqui incriminada é lícita.”Nota 11

Na mesma esteira, são as palavras de Marcos Ramayana:

“De fato, a divulgação do voto pelo próprio votante conduta atípica, mas a divulgação feita por terceiros, sem a previa divulgação do titular, e exaurimento do delito, pois, nesta hipótese, o sigilo foi quebrado e ainda foi o voto divulgado.”Nota 12

Rui Stoco é corroborativo ao afirmar:

"o eleitor não pode ser sujeito ativo do delito, nem mesmo copartícipe. Caso o eleitor, ao terminar de votar faça qualquer comentário [...] estará quebrando o sigilo do voto, mas não estará “violando” o sigilo do voto. Ademais, o preceito incriminador não é dirigido ao eleitor que, para revelar em quem votou não precisa violar o sigilo determinado pela Lei. Apenas manifesta, livremente, o desejo de revelar a sua escolha”Nota 13

O mesmo destaque foi feito pelo representante da Procuradoria Regional Eleitoral de Minas Gerais quando do parecer lançado no Habeas Corpus no 97-38.:

“O sigilo do voto é uma garantia dada ao eleitor. Automaticamente, surge para terceiros a obrigação de não violar esse direito. Com efeito, o verbo do tipo, "violar", significa ter acesso indevido ao teor do voto de outrem, e não ao seu próprio voto. O objetivo desse sigilo é fazer com que o eleitor não tenha que se justificar com outras pessoas, o que dificulta a prática de coação e corrupção.

No caso dos autos, em que pese tenha o paciente violado o artigo 91-A da Lei das Eleições ao adentrar a cabina de votação portando telefone celular, a conduta praticada não se amolda ao crime tipificado no artigo 312 do Código Eleitoral, pois este, como dito, refere-se a violação do sigilo do voto por terceiros e não pelo próprio titular do sufrágio.

(...)

Nessa mesma linha de raciocínio, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves' explica-nos que: 'é do eleitor a decisão de revelar, ou não, o sentido de seu voto, não se podendo compeli-lo a isso de nenhuma maneira. Por igual, não é possível a adoção de nenhum procedimento que permita, ao final, a descoberta da escolha do eleitor."

No mais, como bem salientou o impetrante, em que pese o citado artigo 91-A da Lei das Eleições proibir que o eleitor vote portando câmeras e celulares, o dispositivo não prevê pena para os descumpridores dessa regra.”

Essa linha de entendimento é recepcionada pela maioria dos Tribunais Regionais Eleitorais, sendo como exemplo:

RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO ESTRITO. ART. 312 DO CPP. ELEITOR FLAGRADO FILMANDO O PRÓPRIO VOTO NA CABINE DE VOTAÇÃO. TUTELA PENAL DE PROTEÇÃO AO SIGILO ALHEIO E NÃO PRÓPRIO. VIOLAÇÃO QUE APENAS PODE SER PRATICADA POR TERCEIROS. DECISÃO DE REJEIÇÃO DA DENÚNCIA ANTERIORMENTE RECEBIDA. RECONSIDERAÇÃO APÓS APRESENTAÇÃO DE DEFESA PRÉVIA. POSSIBILIDADE. RECONHECIMENTO DA MANIFESTA ATIPICIDADE DA CONDUTA. MANUTENÇÃO DA DECISÃO. DESPROVIMENTO DO RECURSO. I - Demanda que tem por objeto a imputação de suposta prática do crime previsto no art. 312 do Código Eleitoral, duas vezes, mediante concurso material, por violações ao sigilo de voto em candidatos a prefeito e vereador, ocorridas no primeiro turno das eleições de , na medida em que o eleitor teria sido flagrado dentro da cabine, filmado seus próprios votos na urna eletrônica. II - Fatos narrados que não constituem crime, devendo ser considerada atípica a conduta perpetrada pelo recorrido. A mera análise em tese do tipo penal já permite alcançar a conclusão lógica de que apenas pode ser contemplado como sujeito ativo da prática delituosa pessoa alheia àquela cuja proteção ao exercício do sufrágio se visa a tutelar. III - O crime de violação ao sigilo do voto não pode ser imputado àqueles eleitores que, por iniciativa própria, entendem por bem revelar a sua opção política, seja por quais motivos ou meios forem. Do contrário, estariam incursos nas penas do tipo penal quaisquer cidadãos que entendessem por bem manifestar prévia ou posteriormente suas escolhas naquele candidato que melhor lhes parecesse adequado a representá-los. IV - Não se desconhece o proibitivo previsto no art. 91-A, parágrafo único, da Lei nº 9.504/97, que veda o porte de aparelhos dentro da cabine de votação, com o objetivo de salvaguardar o exercício livre e secreto do voto, evitando, assim, eventuais aliciamentos e captações ilícitas de sufrágio porventura decorrentes de tais condutas. Todavia, tal reprimenda, por si só, sequer possui sanção expressa na seara cível-eleitoral e com mais razão não pode ser objeto de tutela do direito penal, cuja incidência deve ser implementada como última ratio. (...). Desprovimento do recurso. (TRE/RJ, RECURSO CRIMINAL n 34165, ACÓRDÃO de 09/08/2017, Relator(aqwe) LUIZ ANTONIO SOARES, Publicação: DJERJ - Diário da Justiça Eletrônico do TRE-RJ, Tomo 210, Data 7, Página 32/46 ).

Decisões de igual teor se fazem presente nas Cortes Eleitorais de São Paulo (Habeas Corpus nº 060098184), Santa Catarina (IP nº 2076), Mato Grosso (Recurso Criminal nº 5973), Mato Grosso do Sul (Recurso Criminal nº 2797) e Minas Gerais (Habeas Corpus nº 060002594).

Importa destacar que se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados Federais o Projeto de Lei nº 839/2017, de autoria do Deputado Gustavo Fruet, com o objetivo de acrescentar o parágrafo único ao art. 299 do Código Eleitoral justamente para tipificar o “crime de violação de sigilo de voto por meio de fotografia ou filmagem”, com a seguinte redação:

“Art. 299. (...)

Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem tirar fotografia ou filmar o próprio voto ou o voto de outrem, com o objetivo de dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita.”

O mencionado PL recebeu parecer positivo da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara, porém ainda não foi submetido à votação pelo plenário da Câmara Baixa do Congresso Nacional.

A existência dessa minuta de lei reforça o posicionamento de inexistência de figura típica eleitoral apta a incidir sobre a conduta de divulgação, pelo eleitor, do próprio voto, remanescendo apenas a proibição administrativa prevista no art. 91-A , parágrafo único, da Lei nº 9.504/97, que veda o porte de aparelhos dentro da cabine de votação, com o objetivo de salvaguardar o exercício livre e secreto do voto, evitando, assim, eventuais aliciamentos e captações ilícitas de sufrágio porventura decorrentes de tais condutas.

Contudo, como visto, tal proibitivo não possui sanção expressa nem mesmo na seara cível-eleitoral e com mais razão não pode ser objeto de tutela do direito penal, sem previsão legal prévia, cuja incidência deve ser implementada como ultima ratio.

Nota 01 Juiz Membro Titular do TRE-GO

Nota 02 Gartner Says Global Smartphone Sales Continued to Decline in Second Quarter of 2019. Disponível em https://www.gartner.com/en/newsroom/press-releases/2019-08-27-gartner-says-global-smartphone-sales-continued-to-dec. Acesso em .

Nota 03 https://eaesp.fgv.br/sites/eaesp.fgv.br/files/u68/fgvcia2020pesti-resultados_0.pdf. Acesso em .

Nota 04 GARCIA, Emerson. “Sistema eleitoral proporcional, custo de campanha e poder econômico: desafios do direito eleitoral brasileiro” in Tratado de Direito Eleitoral, vol. 7, p. 141.

Nota 05 CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: Direito Constitucional Positivo. Belo Horizonte: Fórum, , p. 241.

Nota 06 Art. 312. Violar ou tentar violar o sigilo do voto: Pena - detenção até dois anos.

Nota 07 MENDES, Gilmar Ferreira. “Curso de direito constitucional” 12. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, , p. 646.

Nota 08 MORAES, Alexandre de. “Direito constitucional”, 33. ed. Atlas, , p. 190.

Nota 09 BEM, Leonardo Schimitt de e CUNHA, Mariana Garcia. “Direito Penal Eleitoral”. 2ª ed., Conceito, , p. 144.

Nota 10 GOMES, Suzana de Camargo Gomes. “Crimes Eleitorais”. 3ª ed., Editora Revista dos Tribunais, , p. 283/284.

Nota 11 GOMES, José Jairo. “Crimes Eleitorais e Processo Penal Eleitoral”. Atlas, , págs. 92/93

Nota 12 RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. ed. Niteroi: Impetus, . p. 757

Nota 13 STOCO, Rui e Stoco, Leandro de Oliveira. “Legislação Eleitoral Interpretada”. Ed. Revista dos Tribunais, , pg. 582