Verba Legis 2021

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Exercício de cargo de Diretor de Entidade filantrópica e desnecessidade de desincompatibilização para concorrer a cargo eletivo

por Sarah Borges VasconcelosNota 01 e Vitória Silva Carneiro LimaNota 02

 

Resumo

Com este estudo, pretende-se analisar o instituto da desincompatibilização para concorrer a mandato eletivo e seu alcance aos ocupantes de cargo de diretor de entidade filantrópica. Através de estudo bibliográfico e pesquisa jurisprudencial, busca-se atingir o resultado mais eficaz para a resposta da problemática apresentada. A Lei Complementar nº 64/1990 atrai as situações de inelegibilidade para disputar cargo eletivo, destacando-se a desincompatibilização no que diz respeito aos cargos e funções vinculados à Administração Pública, onde exige que seu afastamento seja anterior à data das eleições. Por fim, conclui-se que não há necessidade de demonstrar a desincompatibilização para os dirigentes de entidades filantrópicas, visto que, tratando-se de instituições de Direito Privado, não se aplica tal exigência, sendo este exclusivo das associações vinculadas à Administração Pública Direita e Indireta.

Palavras-chave: Cargo Eletivo. Diretor. Entidade Filantrópica. Desincompatibilização. Desnecessidade.

 

1. Introdução

O presente artigo surgiu da necessidade de analisar os institutos que visam a diminuição de desigualdades no que tange ao pleito eleitoral bem como suas nuances.

O objetivo central dessa pesquisa é explorar o instituto da desincompatibilização, assim como o momento em que ele não se mostra mais necessário. Todavia, em específico, adentrar quanto ao seu espaço no ordenamento jurídico brasileiro, em especial na legislação eleitoral, de forma a refletir quanto aos atuais entendimentos jurisprudenciais que rodeiam o tema. Enfatizase, portanto, a desnecessidade de desincompatibilização para cargos eletivos em relação aos dirigentes de entidades filantrópicas.

Ressalta-se a importância desse estudo, uma vez que, tratando-se de um advento extremamente recente, torna-se primordial observar as transformações relacionadas ao ordenamento jurídico brasileiro, justificando-se, assim, a escolha do tema.

Além da problematização quanto aos impactos dos posicionamentos do Tribunal Superior Eleitoral serem cruciais para os aplicadores do Direito, visto que o conhecimento deve acompanhar a evolução da sociedade. O presente estudo também é de grande relevância para o público acadêmico e a sociedade em geral, sendo que a todo momento é possível observar membros da Administração Pública ensejando cargos eletivos e, dessa forma, é de essencial importância instruir a todos quanto aos seus direitos e deveres como cidadãos, eleitores e futuros candidatos.

A metodologia utilizada para essa pesquisa foi a metodologia qualitativa e descritiva, pois estudou o fenômeno da desincompatibilização, seu lugar na legislação normativa, o surgimento de posições diversas e interpretações extensivas quanto ao assunto, bem como na ocorrência de entendimentos de tribunais superiores que visam à uniformização das correntes doutrinárias.

Ademais, foi utilizado a compilação bibliográfica e o uso de artigos científicos recentes acerca da temática, aprofundando-se principalmente no Código Eleitoral e a Constituição Federal de . Verificou-se, inclusive, a imprescindibilidade de dedicar-se ao estudo de informativos e decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

 

2. Aplicação da desincompatibilização pelo ordenamento jurídico brasileiro

Com o fim de se assegurar a isonomia nas disputas por mandato eletivo, a Legislação Eleitoral incumbe-se de normatizar determinadas situações que poderiam alterar a regularidade e a paridade entre seus partícipes. Dentre estas, destaca-se o instituto da desincompatibilização, necessário para evitar inelegibilidade do candidato por estar em uma situação específica que seja incompatível com o exercício do mandato ao qual irá concorrer.

Nos dizeres de Tácito Cerqueira e Camila Cerqueira ()Nota 03, desincompatibilização “é o ato pelo qual o candidato se desvencilha da inelegibilidade a tempo de concorrer à eleição.”.

Desta feita, a Lei Complementar nº 64/90 - Lei da Inelegibilidade, em consonância com o art. 14, §9º, da CF, estabeleceu, portanto, outras formas de inelegibilidade além das previstas na Carta Magna, e o procedimento exigível para seu sobrestamento.

Da análise minuciosa do texto legal, percebe-se que a inelegibilidade, além das situações em que o futuro candidato tenha atentado contra o ordenamento jurídico, seja por transgressões penais, eleitorais ou cíveis, contempla também aqueles que detém cargo na Administração Pública, seja indireta ou direta.

O escopo desse instituto está em coibir que aqueles que desejem ser candidatos, estando vinculados à Administração Pública, malversem de seu maquinário para obter vantagens, influenciando, como já descrito alhures, na isonomia de seus pares.

O Excelentíssimo Ministro Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, no julgamento do Agravo em Recurso Especial nº 0600135-86, oriundo do Tribunal Regional Eleitoral do Piauí, tratouse de adentrar na discussão da matéria, atentando-se para vantagem indevida que o candidato poderia se agraciar em razão de seu cargo públicoNota 04:

ELEIÇÕES 2020. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO DE CANDIDATURA. PREFEITO ELEITO. DEFERIMENTO. DESINCOMPATIBILIZAÇÃO. LC Nº 64/90. ART. 1º, II, i, c.c. o ART. 1º, IV, a. SÓCIO-GERENTE. PESSOA JURÍDICA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS A MUNICÍPIO DIVERSO DAQUELE PELO QUAL DISPUTOU CARGO ELETIVO. INTERPRETAÇÃO ESTRITA. CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA. PRESERVAÇÃO DO JUS HONORUM. DESPROVIMENTO. 1. É assente na jurisprudência deste Tribunal que, "por se tratar de restrição de direitos (por exemplo, restrição ao ius honorum), as normas concernentes a inelegibilidade, nas quais se incluem as regras de desincompatibilização, devem ser interpretadas restritivamente (Cta 459-71/DF, Rel. Min. LUIZ FUX, DJe )" (REspe nº 235-83/TO, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, PSESS de ). 2. Segundo a moldura fática consignada no acórdão regional, o recorrido atuou como sócio-administrador em pessoa jurídica que mantinha contrato de fornecimento de bens para município diverso daquele pelo qual concorreu às eleições, circunstância que afasta a necessidade de desincompatibilização nos moldes do art. 1º, II, i, c.c. o art. 1º IV, a, da LC nº 64/90. 3. O acórdão recorrido está em harmonia com a jurisprudência desta Corte Superior, o que atrai a incidência da Súmula nº 30/TSE, segundo a qual "não se conhece de recurso especial eleitoral por dissídio jurisprudencial, quando a decisão recorrida estiver em conformidade com a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral", aplicável igualmente aos recursos manejados por afronta a lei (AgR-REspe nº 448- 31/PI, Rel. Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, DJe de ). 4. Recurso especial desprovido, mantendo-se o deferimento do registro de candidatura do recorrido para o cargo de prefeito do Município de Cristalândia do Piauí/PI. (TSE - REspEl - Recurso Especial Eleitoral nº 060013586 - CRISTALÂNDIA DO PIAUÍ - PI, Min. Relator: TARCISIO VIEIRA DE CARVALHO NETO, Data de Julgamento: , Data de Publicação: DJ - Diário de justiça eletrônico, Tomo 49, Data ).

Destaca-se trecho do Informativo nº 23, do TSENota 05:

“Segundo o relator, Ministro Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, para o TSE, a razão de ser “dos institutos da incompatibilidade e da desincompatibilização reside na tentativa de coibir - ou, ao menos, amainar - que os pretensos candidatos valham-se da máquina administrativa em benefício próprio, circunstância que, simultaneamente, macularia os princípios da Administração Pública e vulneraria a igualdade de chances entre os players da competição eleitoral, bem como a higidez das eleições” (Ac. de no AgR-REspe nº 39183, rel. Min. Luiz Fux).”

Identificada a situação de desincompatibilização, a legislação determina a obrigatoriedade de afastamento, em definitivo ou provisoriamente, do pretenso candidato, em prazo utilizando-se como data-base o primeiro turno das eleições, sob pena de indeferimento do registro de candidatura.

A cada índice de desincompatibilização, paralelo ao cargo almejado, encontra-se um prazo diferente, devendo o responsável providenciar seu afastamento do cargo incompatível de seis a quatro meses antes.

Lado outro, embora a matéria tratada aqui restrinja-se tão somente à discussão das situações de inelegibilidade para aqueles que ocupem cargos na Administração Pública, estas por aí não se esgotam. A Lei Complementar nº 135, de , popularmente conhecida por Lei da Ficha Limpa, contribuiu bastante para ampliar as hipóteses de inelegibilidade, também com o fito de proteger a moralidade e a probidade administrativa na disputa das Eleições.

 

3. Uma análise quanto ao atual posicionamento do Tribunal Superior Eleitoral

Exemplificando o estudo observado nesse presente artigo, passa-se a analisar o caso concreto objeto do Recurso Especial Eleitoral nº 0600626-98.

Inicialmente, o caso em apreço trata-se de candidato ocupante de cargo de diretor em entidade filantrópica que deparou-se com sua candidatura sobrestada. Nesse sentido, foi interposto Recurso Especial Eleitoral contra acórdão em que o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro realizou a reforma da sentença, indeferindo o registro do candidato eleito para o cargo de vice-prefeito nas Eleições sob o argumento de ausência de desincompatibilização.

Entretanto, ocorre que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por unanimidade de votos, acolheu e deu provimento ao Especial, reformando a decisão de primeira instância e deferindo o registro de candidatura.

Nesse toar, faz-se necessário compreender os pontos dessa decisão. É preciso ter em mente o dispositivo da Lei de Inelegibilidade (alínea a-9 do Inciso II do Artigo 1º da Lei Complementar nº 64/1990) que trata da necessidade de desincompatibilização de dirigentes de autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas e aquelas mantidas pelo poder público para se afastarem de suas funções até quatro meses antes do pleito.

Todavia, nada é mencionado quanto à empresas, entidades e sociedades de Direito Privado. Ao deparamos com entidades filantrópicas, até mesmo aquelas mantidas por recursos públicos, estas não configuram-se como associações públicas, instituições da Administração Direta ou Indireta, e sim como associações privadas. Sendo assim, não há o que se dizer na aplicação do artigo supracitado e, consequentemente, não há a necessidade de desincompatibilização de seus dirigentes.

A legislação ao tratar de limitações de direitos políticos deve ser interpretada de forma restrita para que dessa forma seja competentemente aplicada em casos concretos. Logo, uma interpretação extensiva a um dispositivo legal, acaba por conter aqueles que desejam disputar uma eleição.

Há pacífica jurisprudênciaNota 06 da Justiça Eleitoral de que as normas restritivas de direitos devem ser interpretadas de maneira restritiva, e não extensiva, como pretende o recorrido, in verbis:

RECURSO ELEITORAL. REGISTRO DE CANDIDATURA. ELEIÇÕES . CARGO DE VEREADOR. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE REGISTRO DE CANDIDATURA. DESINCOMPATIBIUZAÇÃO. MEMBRO/DIRIGENTE DE ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA DE PEQUENOS PRODUTORES DE DIREITO PRIVADO E SEM FINS LUCRATIVOS. NÃO COMPROVAÇÃO DE RECEBIMENTO DE AJUDA OU SUBSÍDIO ORIUNDO DO PODER PÚBLICO. NECESSIDADE DE MAIS DA METADE DA RECEITA ADVINDA DE RECURSOS PÚBLICOS. DESNECESSIDADE DE DESINCOMPATIBILIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE INTFRPRETACÃO EXTENSIVA DE NORMA RESTRITIVA DE DIREITO. PRECEDENTES DO TSE E DESTA CORTE ELEITORAL. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. MANUTENÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA. REGISTRO DE CANDIDATURA DEFERIDO. (TRE/GO; ELEITORAL n 16707, ACÓRDÃO n 964/2016 , Relator Abel Cardoso Morais, Publicação: ).

Assim sendo, considerar que associações privadas receberão o mesmo tratamento e limitações de associações públicas é tamanho devaneio. As entidades filantrópicas são associações de Direito Privado que tem por objetivo prestar serviços à sociedade, principalmente às pessoas mais carentes, e não possui como finalidade a obtenção de lucro. Destarte, independentemente da sua fonte de manutenção, continuam sendo instituições privadas.

Apesar do dispositivo ser taxativo e delimitar o rol das incompatibilidades, ainda sim faz-se mister concluir que é incabível estender a desincompatibilização a cargos e funções fora da Administração Pública, seja direta ou indireta.

A jurisprudência como fonte do Direito deve cumprir o seu papel de uniformizar os entendimentos país a fora. A desincompatibilização no que tange à entidades filantrópicas e seus diretores dividia posicionamentos e a partir de então é possível cogitar uma pacificação quanto ao tema.

Ademais, o atual posicionamento do Tribunal Superior Eleitoral contribuiu para sanar quaisquer lacunas que fossem propensas à interpretação extensiva e que pudessem gerar insegurança jurídica.

 

4. Conclusão

Dentre os requisitos indispensáveis ao deferimento do registro eleitoral, destaca-se a desincompatibilização, que exige do pretenso candidato que seja detentor de cargo no âmbito da Administração Pública o afastamento, provisório ou em definitivo, em prazo anterior ao da data do primeiro turno da eleição a qual este concorrer, sob pena de indeferimento de seu pleito, observados os prazos dispostos na Lei Complementar nº 64/1990.

Tal medida se mostra arrazoada, visto que tem o fito de proteger a isonomia e a moralidade da disputa eleitoral, de forma a evitar-se que aquele candidato utilize-se de seu cargo em benesse própria, influenciando negativamente os eleitores com o uso indevido do maquinário público.

Entretanto, indiscutível faz-se que a desincompatibilização está atrelada apenas ao âmbito do serviço público. In casu, a análise se dispôs a enfrentar o tema diante de uma situação em que um dirigente de entidade filantrópica teve sua candidatura indeferida pelo argumento de que este era inelegível por desincompatibilização do mandato eletivo com o cargo que ocupava.

Ocorre que não havia razão para tal ocorrência uma vez que as entidades filantrópicas possuem natureza jurídica de Direito Privado, portanto, incabível aplicar a normatização da Lei Complementar nº 64/1990 para o cargo de diretor.

Sendo assim, o atual posicionamento do Tribunal Superior Eleitoral é de que não cabe ao dirigente de entidade filantrópica demonstrar sua desincompatibilização para concorrer ao mandato eletivo, sendo que argumento contrário não possui sustentação na lei, e, agora, na jurisprudência, para prosperar.

Por fim, conclui-se, brevemente, pela possibilidade de um dirigente de entidade filantrópica pleitear cargo público sem promover sua desincompatibilização, haja vista que tal exigência destina-se unicamente àqueles que tenham vínculo na Administração Pública. Ainda que a entidade tenha repasses de dinheiro público, evidencia-se sua natureza de Direito Privado.

 

Referências

Nota 01 Assessora Jurídica. Pós-Graduanda em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale.

Nota 02 Advogada. Pós-Graduanda em Direito Público pelo Instituto Goiano de Direito/Faculdade Cambury.

Nota 03 CERQUEIRA, Thales Tácito; CERQUEIRA, Camila Albuquerque. Direito Eleitoral Esquematizado. - 2. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2012.

Nota 04 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Recurso Especial Eleitoral nº 060013586. Cristalândia do Piauí-PI. Relator: Min. Tarcisio Vieira De Carvalho Neto. Publicado em Diário da justiça eletrônica, Tomo 49, Data 18/03/2021.

Nota 05 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Assessoria Consultiva do Tribunal Superior Eleitoral (Assec). Ano XXIII - Informativo nº 3.

Nota 06 TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DO ESTADO DE GOIÁS. Recurso Eleitoral nº 1.6707, Acórdão nº 964/2016. Silvânia-GO. Rel. Des. Abel Cardoso Morais Publicado em Sessão, Tomo 77, Data 21/09/2016.