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ARTIGO 17, §2º DA RESOLUÇÃO TSE Nº 23.607/2019: UMA INTERPRETAÇÃO CONFORME

por Marina Almeida MoraisNota 01 e Wandir Allan de OliveiraNota 02

 

Resumo

O presente estudo investiga o alcance da vedação imposta no art. 17, §2º da Resolução TSE n º 23.607/2019, que veda o repasse de recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha a partidos não coligados. Posto o problema, busca-se, mediante levantamento bibliográfico e análise do sistema de normas eleitorais como um conjunto, sugerir a melhor interpretação da norma. Em um contexto no qual as coligações não são mais possíveis para as eleições proporcionais, assevera-se que a norma se refira às candidaturas majoritárias, onde o instituto ainda é possível, corroborando a legalidade de doações entre filiados de todos os partidos que integrem a coligação. Ao final, consigna-se que, dada a ausência de proibição legal expressa e a possibilidade de pagamento de despesas comuns prevista em lei, uma interpretação extensiva do artigo ofende ao princípio constitucional da autonomia partidária.

Palavras-chave: Fundo Especial de Financiamento de Campanha. Partidos Políticos. Coligação. Autonomia partidária.

 

1. Introdução

Com a proibição do financiamento eleitoral por pessoas jurídicas estabelecido pela Lei nº 13.165/2015, o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) surgiu como uma importante forma de prover recursos essenciais ao desenvolvimento das campanhas políticas. A Lei nº 13.487/2017 se ocupou de incluir na Lei das Eleições (LE) o art. 16-C, estabelecendo que o Fundo será constituído por dotações orçamentárias da União em ano eleitoral. Por consequência, tem-se então o um fundo constituído por recursos públicos, que por essa natureza demandam maior transparência e controle em sua utilização.

A Lei das Eleições limita-se, nesse dispositivo legal, a instituir a constituição do Fundo, a forma como será distribuído aos partidos, a possibilidade de renúncia e o dever de devolução ao Tesouro Nacional em caso de sua não utilização nas campanhas eleitorais. Pois bem.

No exercício de seu poder regulamentar, por força do art. 23, inciso IX do Código Eleitoral, o TSE editou a Resolução nº 23.607/2019, que dispõe sobre a arrecadação e os gastos de recursos por partidos políticos e candidatos e sobre a prestação de contas nas eleições. A Resolução tratou do FEFC, reproduzindo no caput do art. 17 a redação do já mencionado art. 16-C e acrescendo nove parágrafos, dentre eles, o §2º.

A Resolução, portanto, estampa que:

Art. 17. omissis

§ 2º É vedado o repasse de recursos do FEFC, dentro ou fora da circunscrição, por partidos políticos ou candidatos:

I - não pertencentes à mesma coligação; e/ou

II - não coligados.

Estivesse a redação posta em momento anterior à Emenda Constitucional (EC) nº 97/2017, não se desafiaria maiores controvérsias: o repasse de recursos seria permitido entre as legendas que integrem uma mesma coligação, e apenas entre elas. Com o fim das coligações proporcionais imposto pela EC, todavia, certamente o repasse não será possível nessas eleições.

Ocorre que a normatividade constitucional ainda permite a celebração de coligações para a eleição majoritária. Não raro, embora sejam apenas dois os candidatos (prefeito e vice-prefeito, governador e vice-governador, presidente e vice-presidente), inúmeras legendas associam-se em apoio a essas candidaturas. E nesses casos, o compartilhamento de recursos entre os filiados não seria permitido?

Nas análises das Prestações de Contas Eleitorais referentes ao pleito de a questão pareceu ocupar papel central, com entendimentos absolutamente antagônicos. Justifica-se assim o escopo do presente artigo: lançar luzes sobre as controvérsias na interpretação do dispositivo, prestigiando sua consonância com a legislação eleitoral e, em especial, a Constituição Federal.

Trabalha-se com a hipótese de que, se coligados na majoritária, os partidos fazem jus ao repasse de recursos do FEFC entre seus filiados, não se podendo olvidar a inarredável importância do apoio dos candidatos proporcionais ao sucesso eleitoral do candidato majoritário. Outras questões não são menos centrais: a ausência de proibição legal expressa e a permissão de pagamento de despesas comuns entre candidatos e partidos.

Como pergunta de fundo, questiona-se a inconstitucionalidade do artigo, dada a previsão constitucional de autonomia partidária na gestão de seus recursos, bem como um possível excesso no poder regulamentar na edição do artigo.

Ao final, os resultados obtidos mediante levantamento bibliográfico permitem inferir que a melhor interpretação do dispositivo sinaliza para a possibilidade de repasse de recursos das candidaturas majoritárias às proporcionais - desde que os partidos estejam coligados para aquela eleição, notadamente em caso de confecção de materiais “casados”, como maneira de consubstanciar as alianças políticas não vedadas pela legislação e garantir o exercício da autonomia partidária na gestão dos recursos em campanhas eleitorais.

 

2. Uma análise a partir do ordenamento eleitoral

Antes de convencionar o disposto no art. 17, §2º, I e II Res. 23.607/2019 com o conjunto de normas propriamente dito, é importante analisa-lo isoladamente, como fim em si mesmo. Nessa primeira leitura, vê-se que ao proibir o repasse de recursos a “partidos não coligados” a norma em análise não faz diferenciação entre coligação ‘majoritária’ ou ‘proporcional’, mas tão somente entre ‘coligados’ e ‘não coligados’.

Dado o fim das coligações proporcionais, parece mais acertado concluir que o desígnio regulamentar era o de abranger precisamente a coligação majoritária, ou a norma estaria esvaziada de sentido, já que a outra não é mais possível.

Ainda que assim não fosse, comparando o instituto com outros, caminha-se na mesma direção. A exemplo, fosse esse o raciocínio a seguir, passar-se-ia a uma co-legitimação de partidos coligados e coligações no pleito. Isso porque o art. 6º, § 4º da Lei 9.504/97 estabelece que:

Art. 6º. omissis

§ 4º O partido político coligado somente possui legitimidade para atuar de forma isolada no processo eleitoral quando questionar a validade da própria coligação, durante o período compreendido entre a data da convenção e o termo final do prazo para a impugnação do registro de candidatos.

Desta forma, seguindo uma lógica ampliativa, o partido coligado na eleição majoritária poderia atuar judicialmente de forma isolada no pleito, uma vez que na eleição proporcional não há possibilidade de coligação. E mais: partidos descontentes com eventuais rumos da campanha poderiam propor demandas infinitas para inviabilizar a chapa que integram. Seria, pois, a “canibalização” do processo judicial eleitoral.

Outro ponto de interesse reside no fato de que a própria Resolução - e a lei, afinal -, permite o pagamento de despesas comuns, como materiais e sede, como "doações estimáveis em dinheiro entre candidatos ou partidos" (art. 60). Se a doação estimável mediante pagamento de despesas pode ser paga com recursos do Fundo, a transferência direta não parece encontrar no ordenamento maiores óbices.

Ultrapassando o que há na legislação, chega-se ao que não há: uma regra proibitiva. Fosse a intenção do legislador proibir as doações entre o candidato majoritário e os proporcionais filiados às legendas coligadas, por certo haveria que se constar vedação expressa a essa transferência.

Se a norma regulamentar estabelece que é vedada a transferência a candidatos de partidos "não coligados" ou "não pertencentes à mesma coligação”, ou se à majoritária, onde os partidos podem se coligar, ou cria proibição não prevista em lei. Aliás, mesmo que a Resolução (norma regulamentar) tivesse a intenção de transpor o quanto previsto na Lei das Eleições e impedir qualquer transferência, teria constado em seu texto que "é vedado o repasse de recursos do FEFC (...) a outros candidatos ou partidos, coligados ou não" - o que não é o caso.

A melhor interpretação se constrói sob o viés de que a proibição de repasse de recursos para outras legendas busca prestigiar a agremiação - titular do recurso. Neste sentir, seu escopo é beneficiar o candidato do partido que recebe o FEFC com esses valores - ainda que a benfeitoria advenha de benefício político recíproco. Nesta linha intelectiva já se manifestou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE):

RECURSO ESPECIAL. ELEIÇÕES . DEPUTADA FEDERAL. CONTAS DE CAMPANHA. APROVAÇÃO COM RESSALVAS. FUNDO PARTIDÁRIO. FUNDO ESPECIAL DE FINANCIAMENTO DE CAMPANHA. DOAÇÃO DE COTA-PARTE. CANDIDATOS DO SEXO MASCULINO. DOBRADINHA. DESVIO DE FINALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. NEGATIVA DE SEGUIMENTO.

1. As candidatas podem utilizar os recursos a elas destinados para o financiamento de candidaturas “dobradas” - masculinas ou femininas - desde que no interesse de suas campanhas, não havendo falar em ilicitude.

2. Na espécie, a recorrida doou R$ 97.200,00 de R$ 2.000,000,00 recebidos do Fundo Partidário e R$ 108.000,00 de R$ 300.000,00 referentes ao Fundo Especial de Financiamento Coletivo a candidaturas masculinas para utilização em campanha conjunta, o que foi considerado razoável e proporcional pela Corte de origem.

3. Manutenção do aresto a quo, na linha do parecer da d. Procuradoria-Geral Eleitoral.

4. Recurso especial a que se nega seguimento. (RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 0601702-71.2018.6.08.0000 (PJe) - VITÓRIA - ESPÍRITO SANTO, RELATOR: MINISTRO JORGE MUSSI, 08/08/2019)

A jurisprudência oriunda do Tribunal Superior Eleitoral em questão análoga, chancela a evolução para um entendimento de que não há ilicitude caracterizada quando os recursos oriundos do FEFC são utilizados em materiais produzidos em conjunto na medida em que resta configurada a reciprocidade do apoio político conjunto - hipótese que aqui se defende.

 

3. Artigo 17, §2º da Resolução 23.607/2019: comentários sobre possível inconstitucionalidade ou ilegalidade

Não é demais suscitar o questionamento acerca da constitucionalidade do dispositivo, posto que a Constituição Federal consigna a autonomia partidária de forma expressa em seu artigo 17 .

A vista de tal princípio o legislador infraconstitucional consignou as balizas para a utilização dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e Fundo Partidário, e o fez por meio de espécie normativa legítima, alterando a Lei das Eleições nos seguintes termos:

Art. 16-C. O Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) é constituído por dotações orçamentárias da União em ano eleitoral, em valor ao menos equivalente:

(...)

§ 7º Os recursos de que trata este artigo ficarão à disposição do partido político somente após a definição de critérios para a sua distribuição, os quais, aprovados pela maioria absoluta dos membros do órgão de direção executiva nacional do partido, serão divulgados publicamente.

Art. 20. O candidato a cargo eletivo fará, diretamente ou por intermédio de pessoa por ele designada, a administração financeira de sua campanha usando recursos repassados pelo partido, inclusive os relativos à cota do Fundo Partidário, recursos próprios ou doações de pessoas físicas, na forma estabelecida nesta Lei.

Diante destas balizas, não é demais suscitar a existência de ofensa à autonomia partidária, uma vez que a lei, em decorrência direta do princípio constitucional, consignou aos partidos políticos a autonomia para fixar os critérios de distribuição e consequente utilização dos recursos do FEFC e Fundo Partidário, cabendo ao TSE tão somente efetivar a distribuição de tais recursos e fiscalizar sua aplicação segundo os regramentos definidos pelos próprios partidos.

A opção constitucional pela instituição do princípio da autonomia partidária afasta do TSE, como instância aplicadora da norma, a possibilidade de avançar sobre a criação de critérios para utilização daqueles recursos se não os definidos pelos próprios partidos e candidatos, exceto na hipótese de normas internas que contrariem ao princípio republicano, ao princípio democrático e ao princípio da isonomia.

Não obstante, há que se evidenciar o caráter regulamentar das resoluções, as quais são atos normativos editados pelo Plenário do Tribunal Superior Eleitoral com o objetivo precípuo de regulamentar, organizar e executar as eleições na dinâmica que o processo eleitoral demanda. Na lição de Manuel Carlos de Almeida Neto ():

[...] o poder regulamentar e normativo da Justiça Eleitoral deve ser desenvolvido dentro de certos limites formais e materiais. Os regulamentos eleitorais só podem ser expedidos segundo a lei (secundum legem) ou para suprimir alguma lacuna normativa (praeter legem). Fora dessas balizas, quando a Justiça Eleitoral inova em matéria legislativa ou contraria dispositivo legal (contra legem), por meio de resolução, ela desborda da competência regulamentar, estando, por conseguinte, sujeita ao controle de legalidade ou constitucionalidade do ato. (p. 219-220)

Indubitável que a Justiça Eleitoral, a pretexto de regulamentar, não pode valer-se dessa função a fim de elaborar resoluções com conteúdo completamente inovador se comparado à legislação em vigência, usurpando assim a competência do Congresso Nacional. Neste sentir, a própria Lei das Eleições:

Art. 105. Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos.

Ante tais ponderações, as razões subjacentes ao mérito dos critérios de utilização de tais recursos dentro das balizas legítimas, tangenciam as competências normativa e jurisdicional da Justiça Eleitoral, impingindo de inconstitucional e ilegal a norma constante do art. 17 da Resolução 23.607/2019, o que poderá ser objeto de outros estudos mais aprofundados.

 

4. Conclusão

Da análise do conjunto de normas eleitorais extrai-se que a mens legis visa privilegiar a figura do partido - a quem pertence os recursos do FEFC destinados, o que, por outro viés, de nenhum modo impossibilita que tais valores sejam utilizados em benefício mútuo, o que é ainda mais evidenciado no caso de materiais casados. A eleição aos cargos majoritários não se dá de maneira dissociada de sua base de apoiadores candidatos aos cargos proporcionais, o que não pode ser ignorado no momento da aplicação da lei.

Verdadeiro desvirtuamento na utilização dos recursos do FEFC se daria caso dissociado de sua função precípua: ser utilizado pelos partidos políticos para levar ao conhecimento do eleitor suas propostas e, em última instância, a própria figura do candidato. A maneira como esse conhecimento é entregue ao eleitor, salvo melhor juízo, foge ao escopo de controle da Justiça Eleitoral.

Também não se pode olvidar que normas restritivas de direito não podem ser aplicadas de maneira extensiva: a Lei das Eleições em nenhum momento proíbe a transferência de recursos, tampouco a própria Resolução o faz de maneira expressa. Entender de modo diverso fere o princípio da autonomia partidária e a própria legalidade, ambos basilares ao Direito Eleitoral. Por essa razão, inclusive, recomenda-se que outras pesquisas sejam realizadas, a fim de perquirir a adequação do dispositivo ao texto constitucional.

Para o momento, após o levantamento realizado no presente estudo, - ainda superficial, dada a brevidade inerente ao artigo, conclui-se pela possibilidade de repasse de recursos entre candidatos filiados a partidos integrantes de uma mesma coligação, mesmo que concorrentes em sistemas distintos (proporcional e/ou majoritário), de modo a conceder interpretação conforme a Constituição e ao conjunto de normas eleitorais ao dispositivo.

 

Referências

Nota 01 Advogada. Especialista em Direito Eleitoral pela Universidade Cândido Mendes (RJ). Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás - UFG. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP. Membra Fundadora do Instituto Brasileiro de Direito Parlamentar - Parla. Coordenadora da Comissão de Estudos Eleitorais da OAB/GO - 2019/2021.

Nota 02 Advogado. Especialista em Direito Eleitoral pelo IDDE. Presidente da Comissão de Direito Político e Eleitoral da OAB/GO - /.

Nota 03 Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: § 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre escolha, formação e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações nas eleições majoritárias, vedada a sua celebração nas eleições proporcionais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.