Verba Legis 2023

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O justo político no De Republica de Cícero

por Lucas de Souza Lima Campos Nota 01

 

Introdução

Define Edmund Burke: a sociedade é uma comunidade de almas que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram Nota 02. Dito isso, deduz-se que os conhecimentos e as ciências – dentre estas, a compreensão do jurídico e do político, e de suas relações -, os quais nos guiam e dos quais usufruímos, também são um produto dos esforços e dos empenhos de nossos antepassados, dignos do cultivo e do aprimoramento de nossos contemporâneos, cujo fim é a sociedade cada vez melhor que almejamos para aqueles que herdarão nossos engenhos.

Em harmonia, asserta Altino Arantes:

o respeito do passado, o amor da tradição são materiais insubstituíveis na estrutura das nacionalidades; e a veneração das grandes personagens – em que se configuram suas lutas, suas aspirações e suas glórias – representa sem dúvida a forma culminante deste culto Nota 03.

Nisso reside a importância de se volver os olhos a Marco Túlio Cícero (106 – 43 a. C.) e às suas incomensuráveis contribuições para formação do que hoje denominamos de sociedade ocidental.

Cícero fora advogado, orador, filósofo Nota 04 e um dos mais influentes políticos de Roma, tendo se dedicado aos mais amplos campos do conhecimento e das práticas humanas, cujos contributos perpassam do direito à filosofia, da linguística à política, da ética à retórica. Nas palavras de Joaquim Carlos Salgado, “o pai da advocacia, o grande teórico e prático do direito e da política, o recriador da retórica, da ética, das teorias políticas, da filosofia, o criador do humanismo e tanto mais Nota 05 ”.

No campo da política, fora o idealizador em De Republica, o qual compreendia como a melhor e mais justa manifestação de governo, que embora como construção teórica, preocupa-se com a realidade empírica, motivo pelo qual nela introduz a história – “não é um, ou não são alguns homens que escrevem ou elaboram a Constituição, mas o povo romano no seu tempo histórico ” Nota 06.

No campo jurídico, em seus De Legibus, De Officiis e De Inventione, oferece-nos, apesar de marcadamente influenciadas pelos pensamentos platônicos, peripatéticos e estoicos, uma teoria do direito e da justiça originais, associando a lei e o justo à natureza humana, em especial, à sua capacidade racional (recta ratio) e ao seu instinto de afeição e associação.

Não se restringindo ao teórico, na junção destes dois âmbitos – do político e do jurídico -, que apenas se faz possível através da atuação política, fora um moderado e um justo, primando sempre, através da busca pela união entre as diversas correntes políticas e mediante o combate dos corruptos e subversores, pela “defesa intransigente dos direitos do povo, dentro do limite legal e de acordo [sic] com o interesse superior do Estado” Nota 07.

Ante isto, compreende-se Cícero por uma das mais importantes figuras da história ocidental na formação das concepções e dos conceitos do político e do jurídico em suas relações, razão pela qual dedica-se este breve artigo a apresentar, em traços gerais, a manifestação da justiça no espectro político de De Republica.

 

1. Linhas gerais da justiça em Cícero Nota 08

É a justiça, para Cícero, uma virtude e, enquanto tal, serve ao direito. Em sua obra De Inventione, define-a: “é o hábito da alma que, para conservar a utilidade comum, atribui a cada uma sua dignidade ” Nota 09. É o direito, portanto, conforme expõe Bruno Amaro Lacerda, alicerçado em Félix Senn, a diferença específica que distingue a justiça como virtude particular Nota 10.

Diz-se que o direito é sua diferença específica, pois, para o Arpinate, o justo compreende uma das quatro fontes de tudo aquilo que se denomina honestum, cujas outras são a prudência, a temperança e a coragem Nota 11:

Sed omne, quod est honestum, id quattuor partium oritur ex aliqua. Aut enim in perspicientia veri sollertiaque versatur aut in hominum societate tuenda tribuendoque suum cuique et rerum contractarum fide aut in animi excelsi atque invicti magnitudine ac robore aut in omnium, quae fiunt quaeque dicuntur ordine et modo, in quo inest modestia et temperantia (Off. 1. 15). Há quatro fontes de onde deriva tudo o que é honesto. A honestidade consiste em descobrir a verdade pela perspicácia do espírito, ou em manter a sociedade humana dando a cada um o que é seu e observando fielmente as convenções; encontra-se, ainda, ou na grandeza e força da alma indômita e inquebrantável ou nessa ordem e medida perfeita das palavras e ações, resultando daí a moderação e a temperança.

Assim, ao se referir a ela enquanto “hábito da alma”, apresenta o seu gênero próximo, aquilo que a assemelha das demais virtudes fontes da honestidade, mas não a sua diferença específica, aquilo que a distingue Nota 12, que se manifesta no ato de conservar a utilidade comum, ao atribuir a cada um à sua dignidade, que é o direito Nota 13.

Dessa maneira, apresentando-a como uma das fontes do honestum, Cícero entende a justiça como manifestação da razão humana em seus fins mais elevados (recta ratio). O honestum advém daquilo que é mais próprio do ser humano, que é a sua capacidade racional coadunada com a busca pela verdade. É este desejo, intrínseco ao ser humano, por conhecer a realidade que o permeia, assim como por desbravar as maravilhas e os sentidos da vida que realmente o guia conforme o que é conveniente à sua natureza.

Através disso, portanto, é possível que ele ordene seus desejos, resguardando-se das fraquezas e das paixões. E é isto que “o instrui, e o dirige, no interesse comum, de acordo com a justiça e as leis” (Off. 1. 13).

A justiça, acrescenta-se, tem como seu fundamento a boa-fé (fides), isto é, “a sinceridade nas palavras e a fidelidade nas convenções Nota 14” (Off. 1. 23). Deste fundamento, extrai-se a figura contratual – instituto alicerçado na sinceridade e na fidelidade do convencionado - como “o princípio a basilar a ideia de justiça, porque se trava entre pessoas dotadas de livre arbítrio, no sentido de preservar a sociedade Nota 15”.

Com vistas a esta preservação da sociedade, a justiça prescreve deveres: o primeiro, não fazer mal a ninguém, a menos que se tenha de repelir uma ofensa; o segundo, usar em comum os bens de comunhão e tratar como próprios somente os que nos pertencem (Off. 1. 20).

No primeiro, é visível uma noção incipiente do que hoje denominamos por “legítima defesa”, assim como a instauração de um princípio basilar da relação entre indivíduos em uma sociedade. No segundo, manifestação da filosofia estoica, explicita-se alicerce das relações privadas Nota 16, posto que tudo aquilo a que se possui o fora adquirido de alguma forma (ocupação, lei, convenção, acordo), razão pela qual pertence a alguém e é deste o usufruto da coisa, de modo que uma violação desta propriedade também se compreenderia uma violação das leis sociais (Off. 1. 21).

Por fim, aclara-se que Cícero também discorre acerca da injustiça, assim como sobre suas fontes e manifestações. Em sua compreensão, existem duas espécies: “uma que é a ação dos que injuriam, outra que é omissão quando, podendo impedir, não o fazemos” (Off. 1. 23). A primeira, é fruto do medo ou da cobiça, a segunda tem causas múltiplas, dentre estas, “o temor de se adquirir amizades, de se desgastar, de se despender muito” (Off. 1. 28).

Logo, para Cícero, a justiça possui duas faces, uma negativa, que se transparece através da abstenção de ser injusto, e uma positiva, cuja realização somente é plena quando se guia o agir em conformidade com o que é justo.

Sucede-se, no entanto, que a justiça não carece tão somente do hábito virtuoso dos indivíduos, mas também de um ambiente a ela propício nas instituições. É necessário que o justo, revelado através do direito, encontre uma estrutura de poder que lhe confira uma validade formal adequada, “de modo que o ato de sua positivação, decorrente da vontade do poder, e de sua ordenação, construída pela razão do sábio, encontrem uma unidade ética Nota 17”. Trata-se, na lição de Salgado, “da organização política da sociedade Nota 18”, que somente se concretiza enquanto ordem jurídica justa, na medida em que é realizada em observância ao justo político.

 

2. Contextualização histórica e de significado do De Republica

De antemão à justiça política, uma sucinta contextualização histórica do momento e das razões pelas quais a obra De Republica fora escrita, assim como acerca da conotação que o termo república adquire em Cícero.

Trata-se do século I a. C., farto em acontecimentos históricos, parco em fontes Nota 19, palco de conturbações políticas, contendas civis, crises econômicas e decadência moral. A postura marcadamente expansionista que Roma adotara, cujo ápice foram as Guerras Púnicas, trouxera-lhe diversos males: “dissolução dos costumes, enfraquecimento do patriotismo e o afrouxamento dos laços de família e da religião Nota 20”. Estes, inevitavelmente, atingiram o âmbito político, tornando-o subdivido em facções Nota 21 e, consequentemente, danificando a estrutura e os alicerces da República romana, fazendo-a ruir, como apresenta Cícero:

Nossa idade, pelo contrário, depois de ter recebido a República como uma pintura insigne, em que o tempo começara a apagar as cores, não só não cuidou de restaurá-la, dando novo brilho às antigas cores, como nem mesmo se ocupou em conservar pelo menos o desenho e os últimos contornos. Que resta daqueles costumes antigos, dos quais se disse terem sido a glória romana? O pó do esquecimento que os cobres impedem, não já que sejam seguidos, mas conhecidos. Que direi dos homens? Sua penúria arruinou os costumes; é esse um mal cuja explicação foge ao alcance da nossa inteligência, mas pelo qual somos responsáveis como por um crime capital. Nossos vícios, e não outra causa, fizeram que, conservando o nome de República, a tenhamos já perdido por completo (Rep. 5. 1).

É diante deste cenário de decadência que, ainda dotado de esperanças, Cícero escreve sua obra De Republica, com o escopo de restaurar os ânimos da República romana, concedendo aos seus contemporâneos políticos as mais nobres e altivas lições sobre as virtudes políticas e acerca do que ele compreendia como a melhor organização para Roma.

Quanto à conotação do termo república, conforme pontua Celso Lafer, este detém diversos significados, alcançando desde o mais amplo de comunidade política organizada, até outros mais restritos - podendo-se dizer stricto sensu - tal e qual o de arranjo político, que é o utilizado por Cícero Nota 22.

República deriva, etimologicamente, do latim res publica e significa “bem público”, sendo Cícero quem primeiro examinou as especificidades inerentes ao seu conceito, diferenciando-o dos demais bens (res), como a privata, a domestica e a familiaris Nota 23. Assim, empreendeu a diferença entre os bens que são comuns a todos e aqueles que são particulares a alguns.

Por isso, de acordo com Lafer, é o povo o destinatário da res pública, sendo este compreendido como “um grupo numeroso de pessoas associadas pela adesão a um mesmo direito e voltadas para o bem comum” Nota 24, ou seja, dotados dos vínculos do consensus juris (o consenso do direito) e da communis utilitatis (a comum utilidade) Nota 25.

A indispensabilidade destes vínculos é destacada, inclusive, em outras obras do Arpinate. Em seu De Legibus, por exemplo, afirma que “entre os quais há comunhão de lei, há comunhão de direito. Assim, os que tem esses laços comuns entre si devem ser reconhecidos como membros de uma mesma cidade” (Leg. 1. 23).

Sobre o que compreenderiam cada um dos vínculos, consensus juris e communis utilitatis, temos que o primeiro se refere a uma consensualidade entre questões de direito, costumes e política, refletida a partir de um “senso compartilhado de justiça” Nota 26; enquanto o segundo compreenderia “a conservação da república, a preservação dos bens e o enfraquecimento do inimigo”, na qual todos gozam dos benefícios e compartilham de seus mútuos deveres Nota 27.

Entretanto, uma vez que as constituições políticas puras (monarquia, aristocracia e democracia) são instáveis, e por demasiado dependentes das virtudes pessoais dos indivíduos que as regem, sob inúmeros riscos se está a consagração da res publica, em seu consensus juris e communis utilitatis. Por esse motivo, defende Cícero, que o arranjo político adequado é a constituição política mista, na qual é mais razoável a consagração do exercício virtuoso da política e a sua conformação à justiça.

 

3. O justo político no De Republica

O campo mais fértil para o florescimento e proliferação da justiça é a política. É no âmbito desta que as decisões aptas a atingirem e alterarem a vida dos indivíduos são tomadas, da mesma forma que é através do exercício político que são estabelecidas as leis que regem a sociedade.

É nesta área que se torna possível ao homem alcançar seus mais nobres engenhos, visto que “em nada se aproxima tanto o nume humano do divino como ao fundar novas nações ou conservar as já fundadas” (Rep. 1. 12). E este elevado engenho de maneira alguma poderá ser exercido se desprovido da justiça, uma vez que “sem a suprema justiça, não se pode reger de modo algum a coisa pública” (Rep. 2. 70). Disto, pois, resulta a relevância do exercício político para a consecução da justiça e da justiça para o pleno exercício político.

Reforçando este raciocínio, Cícero afirma que a conquista de todos os bens da vida, como a piedade, a religião, o direito das gentes, a fé, a equidade, o pudor, a continência, dentre outros, perpassam pelo domínio político, haja vista que surgiram “daqueles que, informando esses princípios pela educação, os confirmaram pelos costumes e os sancionaram com as leis” (Rep. 1. 2), razão pela qual crê “que aos que governam a República com sua autoridade se deve antepor a sabedoria dos peritos em negócios públicos” (Rep. 1. 3).

Nesse sentido, entende-se que o exercício da justiça política se inicia com o próprio indivíduo. Para que virtuosas sejam as instituições, virtuosos devem sê-los aqueles que as compõem. Não por outro motivo, para Cícero, mais importa quem governa e as virtudes que este traz em si, assim como os valores que orientam o governo, do que o modelo através do qual se governa. É o que deixa claro ao enunciar, quando, através de Catão, se refere à monarquia, à aristocracia e à democracia, que “cada um desses três tipos de governo, se conservar aquele vínculo que uniu primitivamente os homens em sociedade, pode ser, não digo perfeito ou excelente, mas razoável; e qualquer um deles pode ser preferido a outro Nota 28(Rep. 1. 42).

Para mais, este caráter virtuoso do governante demonstra-se indispensável, pois é no território político que são tomadas as mais difíceis resoluções, por vezes carecendo, para que se atinja o justo, de se enfrentar variados percalços. Por isso, Cícero admoesta os cidadãos ao dever de se elevarem intelectualmente e se prepararem para a prática dos negócios públicos Nota 29, uma vez que “não está em nossas mãos servir à República quando a vontade ordena e de improviso, mesmo quando ela corre grave risco, se não nos tivermos colocado antes em condições favoráveis” (Rep. 1. 10).

Em contrapartida, os referidos infortúnios não assolam aqueles que fecham os olhos para tais deveres. Entretanto, esta não é a escolha do homem virtuoso Nota 30, pois “o mérito da virtude está na ação” (Off. 1. 19) e se abster de agir, por motivos egoísticos, quando a pátria clama, é sinal de vício. Cabe evidenciar que não há escusa legítima o suficiente para apartar os homens do dever perante a terra que os gerou e os acolhe, pois, como afirmou Lúcio Júnio Bruto, citado pelo Arpinense, “todo homem é magistrado quando se trata de salvar a pátria” (Rep. 2. 46).

Nessa perspectiva, entende Cícero que, se fosse absolutamente necessário escolher entre o ócio reservado à erudição e uma vida destinada aos negócios públicos, “apesar de parecer mais feliz a vida pacífica e santa, passada tranquilamente na solidão dos estudos e das artes, eu julgaria certamente mais louvável e ilustre a vida cívica, na qual brilham tão grandes homens, como Cúrio” (Rep. 3. 4). Não por outra razão, defendia que “o homem veemente prefere, embora seja chamado de louco e a necessidade não o obrigue, arrostar as tempestades públicas entre suas ondas, até sucumbir decrépito, a viver no ócio prazenteiro e na tranquilidade” (Rep. 1. 1).

Diante disso, com o fito de que se atinja a justiça nos negócios públicos e em seus regimes de governo, o Arpinate externa algumas máximas. A primeira, expressa mediante Cipião, é o dever de que haja igualdade legal para todos os cidadãos, de modo que todos possuam os mesmos direitos, sem prejuízos ou benesses a quem quer que seja. Somente assim é possível que uma sociedade seja justa. Nas suas palavras:

quare cum lex sit civilis societatis vinculum, ius autem legis aequale, quo iure societas civium teneri potest, cum par non sit condicio civium? si enim pecunias aequari non placet, si ingenia omnium paria esse non possunt, iura certe paria debent esse eorum inter se qui sunt cives in eadem re publica. quid est enim civitas nisi iuris societas civium? (Rep. 1. 49) Sendo a lei o laço de toda sociedade civil, e proclamando seu princípio a comum igualdade, sobre que base assenta uma associação de cidadãos cujos direitos não são os mesmos para todos? Se não se admite a igualdade da fortuna, se a igualdade da inteligência é um mito, a igualdade dos direitos parece ao menos obrigatória entre os membros de uma mesma república. Que é, pois, o Estado, senão uma sociedade para o direito?

Este é igual e indistinto direito deve alcançar também aos governantes, fazendo-se a estes valer. Não, simplesmente, por seu caráter impositivo, mas antes porque compreende função primordial de um dirigente justo servir de exemplo para seu povo. Por isso, exalta Cícero:

virtute vero gubernante rem publicam, quid potest esse praeclarius? cum is qui inperat aliis servit ipse nulli cupiditati, cum quas ad res civis instituit et vocat, eas omnis conplexus est ipse, nec leges inponit populo quibus ipse non pareat, sed suam vitam ut legem praefert suis civibus (Rep. 1. 52). Que é mais admirável do que esse governo, quando o que manda não é escravo de paixão alguma e dá o exemplo de tudo o que ensina e preconiza, não impondo ao vulgo leis que é o primeiro a não respeitar, mas oferecendo, como lei viva, a própria existência aos seus compatriotas?

Um elevado exemplo desse respeito ao direito por parte dos governantes é o, citado por Cícero, do decênviro C. Júlio, o qual ao denunciar o ato do nobre L. Sexto, de cuja habitação vira retirar um cadáver, apesar de possuir o supremo e inapelável poder em razão de seu cargo, aceitou a caução oferecida pelo acusado sob o pretexto de que “não queria infringir maravilhosa lei, pois só aos comícios de centúrias cumpria julgar a vida de um cidadão romano” (Rep. 2. 61).

Além da igualdade legal, a sociedade deve ser composta de justos direitos, o que, consequentemente, torna-os bons. Dentre o rol de regras, Cícero destaca a importância de a comunidade assegurar a seus cidadãos uma vida pura e honesta. Segundo ele, “vida que é sua primeira causa, e que os indivíduos da República devem esperar das instituições e das leis” (Rep. 4. 3).

A segunda máxima assinalada por Cícero é a de que os governantes tenham pelos governados um sentimento equânime ao que um pai tem por seus filhos. Não deseja com isto um governo paternalista no sentido que hoje se adota, mas sim que a benevolência e a justiça do dirigente perante os dirigidos sejam em semelhança ao que um pai possui pelos filhos. Tamanha a importância disso que, concorde o filósofo, os seus antecessores não davam “o título de senhor e dono ao chefe cujas justas leis observavam; não lhe dava tampouco o título de rei, mas o chamavam de protetor da cidade, pai e mesmo deus”, porquanto “consideravam que a existência, a glória, a honra, procediam da justiça do rei” (Rep. 1. 64).

À vista disso, Cícero advoga pelo dever de os governantes agirem no esclarecimento dos governados, com o escopo de lhes instruir em direção aos caminhos mais virtuosos e, consequentemente, mais justos. É o que se depreende, quando relata que Numa Pompílio, ao assumir o trono de Roma, após ensinar aos governados que era melhor e mais vantajoso o cultivo dos campos do que a devastação e a pilhagem, inspirou-lhes “o amor à paz e à calma, garantias da fé e da justiça” (Rep. 2. 26).

De igual forma, argumentasse que, por ser uma virtude, não cabe a justiça ser imposta pela violência, atitude esta de tiranos, mas sim conquistada pela razão, cuja afeição alcança a todos, vez que elo da humanidade. Para o filósofo, um regime que não se baseia no direito e na justiça, mas sim na opressão, não pode verdadeiramente ser considerado uma República. É o que demonstra quando argui: “quem podia chamar República – continuou Cipião – ao Estado em que todos estavam oprimidos pela crueldade de um? Não havia vínculos de direito, nem consentimentos na sociedade, que é o que constituía o povo” (Rep. 3. 43). Nesses governos assim corrompidos, “nada era do povo nem para o povo. Posto que, onde está o tirano, não só é viciosa a organização, como também se pode afirmar que não existe espécie alguma de República” (Rep. 3. 43).

Por este motivo, Cícero exibe que “se um dia os que nos obedecem ainda pela afeição só puderem ser contidos pelo terror, receio muito [...] por nossos filhos e pela imortalidade de nosso império” (Rep. 3. 41), do mesmo modo que expõe que somente será um justo governante “aquele que possa proteger o estado com suas palavras e com suas obras” (Rep. 2. 51).

Outro ponto ostentado por Cícero como inevitável para que um regime político seja e perpetue-se justo é a indispensável sucessão de bons líderes. Um Estado para que seja próspero e justo não pode se alicerçar em apenas um dirigente, mas deve antes zelar para que haja uma sucessão contínua de bons governantes inspirados pela benevolência e pela justiça. É este, segundo Cícero, o motivo pelo qual a república romana se destaca quando comparada aos governos de outras pátrias.

Para o filósofo, enquanto estas tiveram em isolados momentos seus grandes homens, Roma, “pelo contrário, gloriosa de uma longa sucessão de cidadãos ilustres, teve para assegurar e afiançar seu poderio não a vida de um só legislador, mas muitas gerações e séculos de sucessão constante” (Rep. 2. 2) Nota 31.

Por fim, expressa Cícero que não basta que esses justos governantes sejam instruídos nos negócios públicos, nem que esse justo direito, o qual alcança a todos indistintamente e que guia as ações políticas, seja meramente conhecido, carecendo-se, igualmente, que o conhecimento e a formalidade deste seja materializado por aqueles. O mérito da virtude está na ação. A consecução da justiça política depende de sua prática. De nada vale uma lei que não conduza à consagração da justiça ou um conhecimento jurídico que não seja aplicado.

Por isso, ao governante recai o dever de zelar pelas coisas do povo; ao direito, por sua vez, o fim de ser aplicado conforme a justiça. Somente assim, para que se mantenha hígida a união entre os homens e se conserve a sociedade. Quer dizer:

ergo, ut vilicus naturam agri novit, dispensator litteras scit, uterque autem se a scientiae delectatione ad efficiendi utilitatem refert, sic noster hic rector studuerit sane iuri et legibus cognoscendis, fontis quidem earum utique perspexerit, sed se responsitando et lectitando et scriptitando ne impediat, ut quasi dispensare rem publicam et in ea quodam modo vilicare possit, is summi iuris peritissimus, sine quo iustus esse nemo potest, civilis non inperitus, sed ita ut astrorum gubernator, physicorum medicus; uterque enim illis ad artem suam utitur, sed se a suo munere non impedit. illud autem videbit hic vir (Rep. 5. 5).

Assim como o agricultor conhece a natureza do terreno e assim como um escritor sabe escrever, procurando ambos na sua ciência, antes a utilidade do que o deleite, assim também o homem de Estado pode estudar o direito, conhecer as leis, beber nas suas próprias fontes, sob a condição de que as suas respostas, escritos e leituras o ajudem a administrar retamente a República. Certamente, deve conhecer o direito civil e natural, sem cujo conhecimento não pode ser justo. Mas deve ocupar-se com tais coisas como o piloto se ocupa com a astronomia, e o médico com as ciências naturais, referindo esses estudos à prática de sua profissão, aproveitando-se deles no que lhe possam ser úteis e sem se separar do verdadeiro caminho que empreendeu.

Portanto, servindo-se das palavras do próprio Cícero, “não há felicidade sem uma boa constituição política; não há paz, não há felicidade possível, sem uma sábia e bem organizada República” (Rep. 5. 7). E, indo além, não há uma boa constituição política, nem mesmo uma íntegra sociedade, sem um impetuoso e responsável cumprimento dos deveres da justiça.

 

 Considerações finais

Neste breve artigo, destinou-se a, em traços gerais, trazer a lume alguns aspectos da relação entre o justo e o político em Marco Túlio Cícero, os quais foram explicitados em seus esforços para a conservação da República romana, das virtudes e do verdadeiro.

Assim, após todo o relatado, compreensíveis se tornam as palavras de Montesquieu, segundo o qual “Cícero é, de todos os antigos, aquele que teve o maior mérito pessoal ”, resultando, como única conclusão possível, a de que este mérito, lavrado nos campos da justiça e da política, teve suas sementes plantadas em seu tempo, mas indubitavelmente renderá seus frutos por toda a eternidade.

 

Nota 01 Advogado. Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Pós-graduando em Filosofia e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Nota 02 BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução na França. São Paulo: Edipro, 2014, p. 115.

Nota 03 ARANTES, Altino. CÍCERO. In: CÍCERO, Marco Túlio. Dos Deveres. Tradução e Notas de João Mendes Neto. São Paulo: Edipro, 2019, p. 12.

Nota 04 Por vezes, caracterizar Cícero enquanto filósofo é algo tido por errôneo. Contudo, servindo-nos das palavras de Montesquieu, em seu Discours sur Cicéron, discordamos: Ele não merece menos o título de filósofo do que o de orador romano. [...] ele é original em seus livros de filosofia [..]. Ele é o primeiro, entre os romanos, que tirou a filosofia das mãos dos sábios, e a liberou dos embaraços de uma língua estrangeira. SANTOS, Igor Moraes. Tradução de: Discurso sobre Cícero, de Montesquieu. Aufklärung: revista de filosofia, [S. l.], v. 5, n. 3, p. p. 207–212, 2018, p. 209.

Nota 05 SALGADO, Joaquim Carlos. O humanismo de Cícero: a unidade da filosofia e da vida política e jurídica. Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 40, p. 157-176, 1 jan. 2012, p. 157.

Nota 06 SALGADO, Joaquim Carlos. Opus Cit. p. 171.

Nota 07 RIBEIRO, Daniel Valle. Cícero, o Senado e o Fim da RepĂșública Romana. Revista de História, [S. l.], v. 38, n. 78, p. 313-324, 1969, p. 319.

Nota 08 Neste trabalho foram utilizadas as seguintes obras de Cícero: De Re Publica, De Officiis, De Legibus; e, na ordem citada, as seguintes traduções: CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Tradução Amador Cisneiros. 3ª Ed. São Paulo: Edipro, 2021; CÍCERO, Marco Túlio. Dos Deveres. Tradução e Notas de João Mendes Neto. São Paulo: Edipro, 2019; e CÍCERO, Marco Túlio. Sobre as Leis (De Legibus). Tradução, Introdução e Notas por Bruno Amaro Lacerda e Charlene Martins Miotti. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2021.

Nota 09 Iustitia est habitus animi communi utilitate conservata, suam cuique tribuens dignitatem. Tradução de Bruno Amaro Lacerda in: LACERDA, Bruno Amaro. Roma e a Ideia de Justiça. Revista Paradigma, Ribeirão Preto-SP, a. XXI, v. 25, n. 1, p. 206-216 Jan./jun. 2016 ISSN 2318-8650, p. 207.

Nota 10 LACERDA, Bruno Amaro. Opus Cit. p. 208.

Nota 11 LACERDA, Bruno Amaro. Opus Cit. p. 207-208.

Nota 12 Os romanos ao empreenderem suas definições, as faziam expondo primeiro o gênero ao que o que estava sendo exposto pertencia, para somente após apresentar a diferença específica. Nesse sentido, Michel Villey, igualmente alicerçado em Félix Senn, afirma que “temos de levar em conta a técnica antiga de definição. Ela começa pela indicação do gênero, ao qual devem suceder as diferenças específicas”. In: VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2016, p. 62.

Nota 13 LACERDA, Bruno Amaro. Opus Cit. p. 208.

Nota 14 Fundamentum autem est iustitiae fides, id est dictorum conventorumque constantia et veritas.

Nota 15 SALGADO, Joaquim Carlos. Opus Cit. p. 168.

Nota 16 SALGADO, Joaquim Carlos. Opus Cit. p. 168.

Nota 17 SALGADO, Joaquim Carlos. Opus Cit. p. 169.

Nota 18 SALGADO, Joaquim Carlos. Opus Cit. p. 169.

Nota 19 Restam-nos, aponta Daniel Valle Ribeiro, escritos de César, de Salústio e as obras de Cícero, em especial, as correspondências e os discursos. RIBEIRO, Daniel Valle. Opus Cit. 313.

Nota 20 RIBEIRO, Daniel Valle. Opus Cit. p. 314

Nota 21 Esta divisão na política romana torna-se explícita quando Cícero, através de Lélio, expõe: Por que o neto de Paulo Emílio, por exemplo, sobrinho de Emiliano, filho de família tão nobre, esperança de tão grande povo, se inquieta pela aparição de um duplo sol, e não indaga a causa por que hoje temos, numa só República, dois senados e quase dois povos inimigos? (Rep.1.31)

Nota 22 LAFER, Celso. O significado de república. Revista Estudos Históricos. v. 2, n. 4, p. 214 – 224, Rio de Janeiro, 1989, p. 214-215.

Nota 23 LAFER, Celso. Opus Cit. p. 215.

Nota 24 LAFER, Celso. Opus Cit. p. 215.

Nota 25 LAFER, Celso. Opus Cit. p. 215.

Nota 26 LAUREANO, Roger. A definição de res publica em Cícero: legitimidade, uso da força e constituição mista no conceito que fundou uma tradição. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 33, 2020, p. 10.

Nota 27 LAUREANO, Roger. Opus Cit. p. 12.

Nota 28 Não obstante, em virtude da dificuldade de se manter esse vínculo que uniu primitivamente os homens em sociedade, a communis utilitatis e o consensus juris, nos governos puros, Cícero compreende a constituição mista, isto é, a junção dos três tipos de governo em um único (Consulado, Senado e Tribunato da Plebe) como o melhor. Desse modo, servindo-se de Catão, afirma: “Por minha parte, creio que a melhor forma política é uma quarta constituição formada da mescla e reunião das três primeiras” (Rep. 1. 45).

Nota 29 Ao dissertar acerca do que ele compreendia por condições necessárias para a formação de um varão prudente e apto aos negócios públicos, Cícero pôde, por meio de Cipião, ratificar esta ideia: “Uma só e exijo – disse o Africano -, pois todas as outras já estão nele compreendidas: estudar sem descanso; trabalhar sem trégua pelo seu aperfeiçoamento; procurar que os outros o imitem; e ser, com o esplendor de sua alma e de sua vida, para os seus concidadãos, como um espelho aberto” (Rep. 2. 69).

Nota 30 Em outra oportunidade, Cícero adverte: “A pátria não nos gerou nem educou sem esperança de recompensa de nossa parte, e só para nossa comodidade e para procurar retiro pacífico para a nossa incúria e lugar tranquilo para nosso ócio, mas para aproveitar, em sua própria utilidade, as mais numerosas e melhores faculdades das nossas almas, do nosso engenho, deixando somente o que a ela possa sobrar para nosso uso privado” (Rep. 1. 4).

Nota 31 Em outra passagem, Cícero, através de Lélio, asserta: “Cada vez parece mais certa a frase de Catão: ‘ - A Constituição da República não foi obra de um homem nem de um tempo” (Rep. 2. 37).