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O conceito de identificação partidária e seus reflexos nas eleições brasileiras

por Marina Almeida Morais Nota 01

 

Introdução

O debate recente sobre identificação partidária e comportamento eleitoral no Brasil vem apontando para a crescente importância do posicionamento dos eleitores com respeito aos partidos dos presidenciáveis. Não raro, eleitores justificam suas escolhas políticas como motivadas por preferência ou rejeição a uma determinada legenda, preenchendo o senso comum com a fabricada divisão de “petistas” e “anti-petistas”.

Neste contexto, é relevante fomentar um debate acadêmico acerca do conceito de identificação partidária, notadamente de modo verticalizado ao fenômeno observado no Brasil, diverso daquele observado, por exemplo, em países tradicionalmente bipartidários como os Estados Unidos.

A partir das conclusões de Borges e Vidigal (2018), que esclarecem, de saída, que, não obstante a crescente importância dos sentimentos partidários na determinação do comportamento dos eleitores nos pleitos presidenciais, “os resultados das análises descritivas e modelos estatísticos multivariados com base nos surveys [Eseb de 2002 a 2014] demonstram que não há evidências de que tal movimento estaria associado a um aumento da polarização partidária de massa”, busca-se sopesar a real influência da identificação partidária nos resultados eleitorais brasileiros.

 

1. O conceito de identificação partidária

Nas palavras de Figueiredo (1991, p. 37), "uma vez formada, a identificação partidária tende a tornar-se estável, ou seja, os eleitores que têm identificação partidária em graus variados, inclinam-se a 'ver' a política e orientar suas ações numa direção partidária”.

A obra clássica, “The american voter” de Campbell et. al. (1960), salienta que o partido ostenta bastante influência sobre a que objetos políticos os eleitores respondem. Esses estudos identificaram alta correlação entre identificação partidária e dimensões de atitudes de simpatizantes, o que reforça o quanto as afeições partidárias interferem na resposta dos eleitores aos elementos da política nacional.

Fiorina (1981) argumenta que, se a socialização do indivíduo na infância molda sua identificação partidária, ainda mais influência exerce sobre a avaliação que o indivíduo faz da experiência acumulada como eleitor, ao longo de sua vida adulta. Assim, segundo o autor, os eleitores monitoram as promessas e desempenhos partidários ao longo do tempo, acumulando essas observações e as transformando num juízo perfunctório que corresponde a sua identificação partidária. A IP seria, portanto, uma informação sintética e econômica que é utilizada pelo eleitor quando este avalia plataformas ambíguas feitas para lidar com futuros incertos.

Por outro lado, Fiorina (1981) reconhece que a IP não é insuscetível de mudanças. Para o autor, a estabilidade da identificação partidária por longos períodos de tempo se deve à consistência das experiências políticas empiricamente verificadas, não a uma imutabilidade inerente à IP. Nesse sentido, menciona que uma afeição partidária preexistente pode influenciar a maneira como um eleitor percebe determinada condição ou evento socioeconômico, mas que tal predisposição não se sobrepõe completamente à realidade. Assim, quando confrontada a percepção da realidade e suas afeições anteriores, ocorrem mudanças na identificação partidária.

Com efeito, há uma intersecção entre avaliação da economia e preferência partidária. É possível questionar se a causa do voto seria mesmo a avaliação da economia, ou se a preferência partidária do eleitor o leva a “ajustar” sua avaliação para que ela possa condizer com sua inclinação política.

A título de exemplo, o estudo de Howell (1986) indica que a análise da economia tende a ser uma opinião instável em alguns grupos de eleitores, em especial dentre os menos sofisticados politicamente. Sobre esses indivíduos, foi possível concluir que tenderiam a se basear nas preferências políticas e partidárias ao avaliar a situação econômica do país, ou seja, seu voto afeta sua percepção da economia, não o inverso.

Kramer (1983), desde o início, já atentava para os efeitos da identificação partidária na percepção econômica exarada pelo indivíduo. Erikson (2004), em sua análise sobre as eleições estadunidenses, foi além e sugeriu que qualquer relação entre percepção econômica e direção do voto seria a preferência política influenciando as avaliações da economia.

Pereira (2014), em análise sobre o cenário brasileiro, define esse imbróglio como um problema clássico de direção de causalidade. Para o autor, uma vez que os cidadãos definam preferências intensas a respeito de candidatos e partidos, é lícito questionar se sua avaliação acerca da economia seria capaz de alterar essas preferências.

 

2. Verticalizando o caso brasileiro

Com efeito, estudos se ocuparam da influência da preferência partidária no comportamento eleitoral brasileiro. Em contraposição ao que se observava em grande parte da literatura, notadamente a estadunidense, produzida em um contexto bipartidário e com tradições partidárias mais fortes e definidas, no Brasil, a princípio, muitos estudos descartaram a identificação partidária como um fator realmente decisivo na direção do voto.

Sobre o período compreendido entre os anos de 1945 e 1964, destacam-se as análises de Lavareda. O autor pontua que, embora o sistema partidário tenha durado apenas por um curto período, ao final deste nada menos que 64% dos eleitores das grandes cidades professava adesão a partidos políticos, que se refletia nos votos conferidos nas eleições presidenciais.

Apesar desses resultados, até os anos 90, predominava uma visão pessimista em relação à possibilidade de construção de identificações partidárias sólidas no Brasil. Autores como Singer (1990) preconizavam uma tendência populista na cultura política pátria, e atribuíam a identificação com o MDB advinda do período anterior à existência de um arranjo que retirava a complexidade do mundo político ao reduzi-lo a duas únicas opções. Caso não houvesse a presença desse arranjo, a tendência seria que o eleitor menos sofisticado caminhasse para uma escolha populista, pautada por uma relação mais próxima entre líder e massas, dispensando o intermédio do partido.

Lamounier e Meneguello (1994) também exprimiram conclusões semelhantes, afirmando que, com pouca confiança nos partidos e com a dificuldade de identificar seu papel na dinâmica política, os critérios do eleitor no que tange à representação são construídos com base na figura do candidato, fortalecendo um personalismo político que predomina no momento da escolha eleitoral.

Baquero (1996) segue o mesmo raciocínio ao salientar uma tendência de declínio no protagonismo dos partidos políticos no Brasil, seguindo um processo mundial. Para ele, a insatisfação dos cidadãos advém principalmente da incapacidade do sistema partidário em se tornar um condutor eficaz das aspirações dos eleitores, contribuindo para um crescente distanciamento entre eleitores e partidos e para o surgimento de novas alternativas de representação política alheias a figura dos partidos tradicionais.

A despeito disso, já em uma análise para os pleitos de 1989 e 1994, Singer (1998) encontrou altos índices de correlação entre identificação partidária e intenção de voto. Importa mencionar que esses resultados referem-se tão somente à parcela do eleitorado que exprime sua preferência partidária, o que corresponde a cerca de 50%. Ainda, esse coeficiente não mede uma relação direta entre a identificação e o voto, mas apenas a relação entre o espectro ideológico dos partidos mencionados e a direção do voto aos candidatos.

Com base nessa lógica é que o autor atesta que em 1989 os eleitores com uma identificação partidária a esquerda tenderam fortemente a optar pelos candidatos de esquerda, e vice-versa. O mesmo ocorreu em 1994, quando o coeficiente de correlação gama entre a preferência partidária e o voto em Luís Inácio ou FHC chegou a 0,93, exprimindo altíssimo grau de associação entre a afinidade por um espectro partidário e a escolha do candidato. Assim, não somente os eleitores que possuíam afinidade com o PT, mas também com outros partidos de esquerda, como PDT, PC do B e PCB-PPS, tenderam a votar em Lula, ao passo em que aqueles que se identificavam com os partidos de centro (PMDB, PTB, PL e PSDB) e de direita (PFL , PPR-PDS, PRN) tenderam a escolher Fernando Henrique.

Castro (1994), em análise da eleição presidencial de 1989, encontrou que a intenção de voto se encontrava correlacionada de maneira significativa à identificação partidária dos eleitores. Todavia, a autora complementa atestando que uma parcela considerável de eleitores não possui uma preferência partidária estável, sugerindo que, pelo menos em parte, as identificações partidárias preexistentes tendem a se manifestar apenas no período eleitoral, no momento da escolha de candidatos.

Silveira (1996), por sua vez, menciona que a identificação partidária é um ponto relevante na decisão eleitoral apenas quando se tratam de pequenos grupos que estejam mais envolvidos com política. Na maioria dos casos, todavia, tem-se eleitores desprovidos de informação, pouco participativos e alheios ao mundo político, o que, por consequência, gera cidadãos que não constroem identificações partidárias significativas. O autor afirma que mesmo as identificações estabelecidas são pouco duráveis, porquanto, em regra, são formadas como um desdobramento da afeição a um candidato específico.

Carreirão e Kinzo (2004), analisando as eleições ocorridas entre 1989 e 2002 no Brasil, concluíram que a identificação partidária é um bom preditor do voto nos casos em que se deseje prever, entre aqueles que manifestaram preferência por algum partido, em que espectro ideológico ele depositará seu voto. Todavia, se o desejo for de antever o candidato específico em que o eleitor votará, a preferência partidária é um indicador pouco confiável.

O estudo dos autores apresentava uma parcela de 58% do eleitorado para quem os partidos não exerciam qualquer influência sobre o voto, e cerca de 42% para quem poderia haver alguma influência, seja por afinidade ou por rejeição a ao menos um dos partidos. Dentro deste grupo, 30% manifestou, simultaneamente, preferência por um partido e rejeição por outro. Diante disso, embora não se possa prever o candidato em quem o voto será depositado, os autores reiteram que o efeito tanto da preferência quanto da rejeição partidárias (ou outras que as substituam ou integrem) são relevantes para a compreensão do voto, devendo ser levados em consideração nos estudos eleitorais no Brasil.

Como exemplo da adesão a esse entendimento tem-se os estudos relativos ao impacto do Bolsa Família na votação obtida pelo PT, em especial no pleito de 2006, que levaram em consideração o aspecto da filiação partidária em suas análises, e lograram conclusões relevantes. Zucco (2008) ao investigar se nos casos em que o titular do mandato a nível local pertencendo a um mesmo partido poderia favorecer o candidato à Presidência, obteve dados que demonstram que a presença de um prefeito do PT apresentou um efeito negativo sobre a parcela de votos de Lula, fato de que também se aplica aos governadores estaduais. O efeito negativo reforçava a hipótese do sucesso eleitoral advindo do programa de transferência de renda, apresentando grande relevância para a compreensão do fenômeno.

A partir disso, muitos estudos apontam que desde a eleição do ex-presidente Lula em 2002 a política brasileira tem se caracterizado por um conflito partidário. Em se tratando de um país multipartidário, não se vislumbra uma dicotomia entre dois partidos, havendo, em verdade, uma divisão entre petistas e antipetistas, conforme ilustra o estudo de Samuels e Zucco (2018).

O estudo transcende a divisão entre partidário ou não partidário. Em sua concepção, especialmente voltada à realidade brasileira, há grupos que os autores classificam como: a) partidários hardcore (incondicionais), que gostam de um partido e não gostam de outros; b) partidários positivos, que gostam de um partido sem repugnar outros; c) antipartidários, que desprezam um ou mais partidos e d) não partidários, indiferentes a todos as agremiações.

Para Samuels e Zucco (2018), uma vez estabelecidas as atitudes de partidários e não partidários, essas podem ser transpostas para padrões consistentes de comportamento eleitoral, diferentemente dos não partidários. Os autores mencionam que esse fator foi subestimado em alguns estudos no passado, e que, com efeito, ao menos os partidários e antipartidários levam partidos em consideração para seu comportamento em matéria de emissão de opiniões e voto. O estudo, que reúne surveys dos anos de 1989 a 2014, a nível municipal, mostra que as atitudes partidárias são relativamente estáveis no Brasil, também moldando as opiniões dos eleitores em políticas públicas e matérias de interesse.

Nesse sentido, Amaral e Ribeiro (2015) também sinalizaram que a identificação partidária ostentou grande relevância na escolha dos governos estaduais, tal como fez na disputa presidencial de 2014. Já Amaral e Tanaka (2016) concluem que a disputa entre PT e PSDB no plano nacional reflete algum efeito estruturador no âmbito estadual. Segundo os autores, “ter escolhido Dilma Rousseff ou Aécio Neves na disputa presidencial impactou nas escolhas de candidatos petistas e tucanos nos pleitos para os governos estaduais” (Amaral; Tanaka, 2016, p. 9). Por outro lado, o impacto da avaliação do governo federal impactou de maneira menos nítida as escolhas de candidatos de PT , PSDB e PMDB no âmbito estadual. Segundo os autores, “ter uma avaliação positiva do governo federal nos últimos quatro anos não apresentou resultado estatisticamente significativo nas escolhas por candidatos petistas, mas reduziu as chances de voto em candidatos do PSDB” (idem, p. 9).

Os autores também demonstraram que identificar-se com o partido do candidato da situação correspondia a uma chance quase três vezes maior de votar nele. Igualmente, “ter votado no incumbente em 2010 amplia substancialmente a chance de escolher o próprio candidato à reeleição ou o indicado pelo governador para sucedê-lo” (Amaral; Tanaka, 2016, p. 12). Essas evidências corroboram a existência de uma razoável estabilidade na escolha dos eleitores em eleições estaduais.

Outro ponto que recebeu bastante atenção na análise de Samuels e Zucco (2018) corresponde ao fenômeno do petismo no Brasil. Os autores mencionam que o Partido dos Trabalhadores construiu suas bases com setores engajados política e civilmente, buscando se manter presente nos pleitos e discussões, e na sociedade de modo geral. Esse esforço foi recompensado com altos níveis de apoio ao partido em muitos municípios objetos do estudo.

Amaral e Tanaka (2016) encontraram evidências de que a preferência partidária também impactou significativamente disputas estaduais. Nas análises feitas pelos autores, a identificação com o PT aumentava em 66% a chance de votar em um candidato petista para o cargo de governador. A preferência pelo PSDB, por seu turno, ampliava em 98% a chance de votar em um candidato tucano. Também foi demonstrado que preferir o partido do incumbente amplia consideravelmente a chance de optar por ele (mais de 160%, segundo os autores).

Amaral e Tanaka (2016) também identificaram alguma coerência por parte do eleitor tanto no que tange a sua escolha em âmbito estadual quanto para a presidência da República. Conforme demonstram, “ter votado no governador em 2010 aumenta em mais de 300%, no primeiro modelo, e em mais de 450%, no segundo, as chances de escolher o candidato da situação no pleito de 2014” (Amaral; Tanaka, 2016, p. 13). De igual modo, o voto na candidata Dilma Rousseff para Presidente nas eleições de 2014 aumentava as chances de optar por seus companheiros de legenda concorrendo aos governos estaduais. Por fim, demonstram também que o voto em Aécio Neves ampliava as chances de escolher candidatos tucanos.

Samuels e Zucco (2018) demonstraram que os padrões observados no Brasil acerca da filiação partidária são similares aos observados em outros países, embora reconheçam que a proporção de partidários estáveis é menor no Brasil do que em outros países.

Borsani (2003) por sua vez, sinaliza que os setores médios e altos da sociedade do país apresentam maior preferência por partidos à direita do espectro ideológico, focados na estabilidade econômica. Por outro lado, os partidos de esquerda encontram apoio em camadas mais baixas, que preferem partidos mais comprometidos com a redução do desemprego e a distribuição de riqueza. O autor também menciona que essas preferências podem ser estáveis, ou seja, mantidas no tempo, ou variáveis, a depender da situação econômica vigente.

 

3. À guisa de conclusão: breves considerações sobre a influência da identificação partidária nos últimos pleitos presidenciais

Uma vez que a sexta onda do Estudo Eleitoral Brasileiro de 2022 (EsebCESOPUnicamp) - principal banco de dados para as pesquisas sobre o tema no país – ainda não se encontra disponível, a doutrina ainda carece de estudos verticalizados acerca da influência do fenômeno nas últimas eleições presidenciais.

A despeito disso, estudos já sinalizam que, em sentido contrário à hipótese de uma associação entre o antipetismo e o crescimento da direita no país, os dados indicam que o eleitorado antipetista é consistentemente heterogêneo, não apresentando um perfil ideológico claro. Singularmente, o grupo de antipetistas independentes se diferencia ainda menos dos petistas do que os eleitores que apresentam simpatias mais intensas pelo PSDB.

Na palavras de Borges e Vidigal (2018), o crescimento do antipetismo parece estar mais relacionado a avaliações negativas de parte do eleitorado com respeito aos governos do PT – o que, por sua vez, impacta diretamente a reputação do partido – do que propriamente a um crescimento de uma direita conservadora e extremista.

A prova disso parece residir nos resultados das eleições presidenciais de 2022, em que, a despeito da aparente rejeição ao partido ex-incumbente, a legenda petista sagrou-se vencedora por maioria apertada de votos. Necessário contextualizar que o governo de direita recém-eleito tomou lugar em momento histórico protagonizado por recorrentes problemas econômicos oriundos da pandemia da Covid-19, o que favorece a hipótese acerca da importância da percepção econômica para a definição do voto, em detrimento da identificação partidária per se.

 

Referências

Nota 01 Advogada e professora. Mestra em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás - UFG. Presidente da Comissão de Direito Político e Eleitoral da OAB/GO (2022-2024). Especialista em Direito Eleitoral e em Direito Público. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Direito Parlamentar - PARLA.