Verba Legis 2023

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A memória como patrimônio e construção da identidade

por Djenane Linhares Santos Nota 01

 

"O narrador conta o que ele extrai da

 experiência - sua própria ou aquela contada

 por outros. E, de volta, ele a torna

 experiência daqueles que ouvem a sua história”

WALTER BENJAMIN

 

Introdução

A imagem como representação do discurso, introduz a questão da memória.

Assim, a ligação entre ciência e arte, provoca estudos interdisciplinares em diversas áreas como Antropologia, História, Educação, Filosofia, Semiologia, dentre outras e, em todas elas, a questão da representação é fundamental.

Na relação entre memória e representação, observa-se uma aproximação entre os pensamentos aristotélico e platônico. Com Platão, uma teoria da memória é, essencialmente, uma teoria do conhecimento, de modo que não é engendrada em relação às realidades e, portanto, é o trabalho precursor do todo.

Por sua vez, Aristóteles defende que a memória, por sua capacidade de resgatar a imagem de um objeto ausente, relaciona-se com a mesma parte da imaginação e da alma.

Deste modo, é na exposição que se potencializa a relação entre as pessoas e o objeto, e onde os instrumentos inseridos facilitam a compreensão entre a história, a ciência e a técnica, melhorando o significado das informações apresentadas como instrumentos de reconhecimento do patrimônio cultural e científico, sobretudo.

Nessa continuidade, formam-se poderosos instrumento cíclicos de educação, de democratização e de desenvolvimento social, direcionando à questões de acesso ao conhecimento, pelo papel social transformador institucional.

No contexto, aborda-se a memória como patrimônio, ao passo de trazer a percepção das coisas para o nível da consciência por intermédio da conservação das experiências passadas para o sentido real, tendo como papel fundamental a exposição e a representação. Pois, como nas palavras de Henri-Louis Bergson, “não há percepção que não esteja impregnada de lembranças”Nota 02(BERGSON, 1959 apud BOSI, 2007, p. 46).

 

1. A memória como instrumento social

“Não basta reconstruir pedaço a pedaço a imagem

 de um acontecimento passado para obter uma

 lembrança. É preciso que esta reconstrução

 funcione a partir de dados ou de noções comuns

 que estejam em nosso espírito e também no dos

 outros, porque elas estão sempre passando destes

 para aquele e vice-versa, o que será possível

 somente se tiverem feito parte e continuarem

 fazendo parte de uma mesma sociedade, de um

 mesmo grupo”.

HALBWACHS

 

A memória está intrinsecamente relacionada ao conhecimento ou a uma função ou experimento descoberto no passado, e é parte de uma inquietude elementar com a sociedade. Assim, comporta-se como matéria imprescindível à reconstrução de uma identidade nacional, sendo ela o caminho que o homem renova suas impressões ou realizações, de modo a recompor a sua história.

As imposições da vida em grupo redundam, amiúde, na moldagem da memória como base, dentro do âmbito de interesse das diversas esferas, as quais inscrevem o cotejo dos atos, passando a existir, desta forma, uma relação entre memória e documento, recuperando o acesso da memória pela imagem.

Quanto a isso, podemos destacar a memória social, coletiva ou individual, das quais originam a natureza social da construção da memória humana através da junção com as questões do tempo e da história, como instrumento de identificação e formação da identidade dos grupos, das instituições, dentre outras, para concretização de um fato social.

Tendo em mente a estruturação, a preservação e a manifestação da história, a proteção do patrimônio histórico é responsabilidade que prima para o fortalecimento da cultura memorial de uma sociedade.

 

2. Mitologia e memória

“Sempre que queremos lembrar-nos de algo

 visto ou ouvido, ou mesmo pensado,

 calcamos a cera mole sobre nossas

 sensações ou pensamentos e nela os

 gravamos em relevo, como se dá com os

 sinetes dos anéis. Do que fica impresso,

 temos lembrança e conhecimento enquanto

 persiste a imagem; o que se apaga ou não

 pôde ser impresso, esquecemos e

 ignoramos”.

PLATÃO

 

Na mitologia grega, a responsável pelo descobrimento da memória e também por ajustar “as denominações para tudo o que existe, por meio das quais designamos cada coisa e nos comunicamos uns com os outros”Nota 03, era Mnemosine — titânide da memória e irmã de Têmis - a deusa da Justiça, ambas filhas de Gaia - deusa da Terra e de Urano — deus do céu.

Trazer à baila, mesmo que de modo panorâmico a mitologia sobre Mnemosine, torna-se inevitável para apresentar a importância da memória pelos gregos, pelo que a mais, desta descendência, foram geradas dentre outras, suas filhas Clio — musa da história; Euterpe - musa da poesia lírica, música e canção; Erato - a musa da poesia de amor e Calíope - a musa da poesia épica. Portanto, vê-se que são das raízes da memória que originaram a arte, a poesia e a história.

Deste modo, a recordação, dentro de um contexto mítico, representa o resgate de um momento tornando-o eterno, num paradoxo com a constatação do tempo, que, por natureza, é dinâmico e disperso. Assim, o resgate do tempo por meio da memória é, afinal, o que confere imortalidade à alma humana e, dessa forma, nos evadimos da “morte”.

Pretensiosamente, a pesquisa da memória, desde os gregos, perpassa por três parâmetros intrínsecos, que são a imagem, a lembrança e o esquecimento e que, hodiernamente movem-se em redor do tema.

Em Ricoeur (RICOEUR, Paul. 2018, p. 25), tem-se que a recordação se torna plausível, unicamente em razão da conservação da imagem primitiva. Assim, aponta que “coisas e pessoas não aparecem somente, elas reaparecem como sendo as mesmas; e é de acordo com essa mesmidade de reaparecimento que nos lembramos delas”.

 

3. A instituição como entidade protetora do patrimônio histórico

“Eu vejo o futuro repetir o passado;

 Eu vejo um museu de grandes novidades.

 O tempo não para.”

CAZUZANota 04

 

O conceito holístico de sustentabilidade, em síntese, pode ser compreendido como um movimento para a mudança, da qual há harmonia entre exploração dos recursos, direcionamento dos investimentos, de mudança institucional e do crescimento tecnológico, na intenção de reforçarem um atual presente e um potencial futuro, a fim de que haja satisfação das necessidades e aspirações humanas para o benefício da presente e das futuras gerações. Nota 05

Nesse cenário, percebe-se a movimentação para a gestão da memória nas diversas instituições públicas como um poder-dever.

Através da reunião de atividades de pesquisa, conservação, preservação, divulgação da história de pessoas e da própria instituição, perpassa o processo de musealizaçãoNota 06, atendendo aos comandos do art. 5º, incisos XIV e XXXIII, da Constituição Federal de 1988 Nota 07, que estabeleceu o direito a informação ao posto de fundamental, bem como o art. 215 que, ampliou o conceito elementar de patrimônio cultural, ao acolher e registrar a existência de bens culturais de natureza material e imaterial.

De igual modo, o art. 23, III, da Carta Maior, que discorre sobre a competência comum da União, estados, Distrito Federal e dos Municípios para proteção de obras, documentos e demais bens de valor histórico, cultural e artístico, junto a um arcabouço de normas e resoluções próprias dos órgãos, num esforço conjunto para consolidação da memória e preservação da identidade cultural da sociedade.

 

4. Conclusão

Pela memória, não só o passado se manifesta. Há um deslocamento de percepções incontinenti preenchendo a consciência como um impulso subjetivo e, simultaneamente extenso e ativo, potente e pungente, coberto e invasor, de modo que a percepção concreta, necessita recorrer ao passado que, de alguma maneira se conservou.

A matéria, portanto, é o conhecimento da memória perceptiva em sua inteireza e autonomia, e a memória, o trabalho realizado pela imagem na construção social através da linguagem. Nesse sentido, há uma dialogicidade interdisciplinar necessária, que compõe a elaboração e a atualização e consequente ligação do objeto.

O simbolismo não se dá simplesmente pelos registros materiais e iconográficos, mas sobretudo, da irradiação da luz da ciência pela razão, discernível no objeto de investigação. Assim, os registros imagéticos e científicos, cumprem seu papel científico, didático e político, enquanto representação naturalizada, enquanto recurso e reforma da sociedade e enquanto discurso de integração e consolidação do Estado.

 

 

Referências

Nota 01 Djenane Linhares Santos, é colaboradora no Tribunal Regional Eleitoral de Goiás, advogada, pós-graduada em Direito Constitucional e discente do curso de Museologia pela Universidade Federal de Goiás — UFG.

Nota 02 Bosi, E. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 14. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Nota 03 DIODORO, 2004, p. 333. (Tradução nossa - No original: “las denominaciones para todo lo existente, por medio de las cuales designamos cada cosa y nos comunicamos unos con otros”).

Nota 04 O tempo não para (Arnaldo Brandão/Cazuza) /CAZUZA — O tempo não para — 1988.

Nota 05 CMMAD, Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991.

Nota 06 http://biblioteca.pinacoteca.org.br:9090/bases/biblioteca/322800.pdf “A musealização consiste em um conjunto de processos seletivos de caráter infocomunicacional baseados na agregação de valores a coisas de diferentes naturezas às quais é atribuída a função de documento, e que por esse motivo tornam-se objeto de preservação e divulgação. Tais processos, que têm no museu seu caso privilegiado, exprimem na prática a crença na possibilidade de constituição de uma sintese a partir da seleção, ordenação e classificação de elementos que, reunidos em um sistema coerente, representarão uma realidade necessariamente maior e mais complexa”.

Nota 07 BRASIL. [CONSTITUIÇÃO DE 1988]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: 2023]. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em 31 mai.2023.