Verba Legis 2023

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A Justiça Eleitoral e a Câmara de Vereadores

por Itaney Francisco Campos Nota 01 e Fernanda Souza Lucas Nota 02

 

 Introdução

O objetivo deste artigo é traçar um paralelo entre duas instituições basilares no cenário do Estado brasileiro, a Câmara de Vereadores ou Câmara Municipal e a Justiça Eleitoral.

Essa análise há de realizar-se à luz da declaração constitucional de que o Brasil se constitui em uma república federativa, regida pelo Estado democrático de direito.

Embora pareça, à primeira vista, haver pouca identidade entre os dois organismos públicos, o certo é que se verificam muitos pontos de embricamento e convergência, a começar pelo fato de encontrarem, ambos, a sua matriz, no texto constitucional, atuando no largo espectro federativo, como partes importantes na engrenagem democrática. Uma - a Justiça Eleitoral - opera auscultando a vontade popular, na formação do governo; a outra, Câmara de Vereadores, tem como resultante dessa mesma vontade, a composição de seus membros.

Com efeito, os componentes das Câmaras Municipais são eleitos pela população cadastrada na Justiça Eleitoral, a quem compete normatizar, preparar e realizar as eleições e proclamar os eleitos, nos vários níveis de governo, aí incluída a municipalidade.

De outra vertente, é importante ressaltar, desde logo a atuação da Justiça Eleitoral e das Câmaras Municipais na consolidação do patrimônio democrático brasileiro, ao longo da nossa história, mormente a partir do segundo período republicano, que tem como marco fundador a revolução de 1930. Esse movimento militar rompeu com a velha política oligárquica e estabeleceu novas diretrizes sociais, políticas e econômicas, com projeto de integrar e modernizar o país. Nesse panorama é que se instituiu um ramo especializado da Justiça, destinado a disciplinar, preparar e realizar as eleições periódicas no país, cabendo-lhe diplomar os eleitos bem como cassar-lhes os registros e diplomas, ou declará-los inelegíveis, nas hipóteses legais: a Justiça Eleitoral.

Os Municípios foram classificados como entes federativos, pela Constituição Federal vigente, dotados assim de autonomia e esferas exclusivas de competência política, organizando-se por meio de lei orgânica, promulgada pela Câmara Municipal. De certo que essa lei deve observar as normas pertinentes da Constituição Estadual e os princípios estabelecidos na Constituição da República.

É da lei que as Câmaras Municipais são compostas por vereadores eleitos diretamente pelos munícipes para o exercício de um mandato de quatro anos. O número de membros das Câmaras municipais subordina-se a limites máximos proporcionais à população municipal. Interessante anotar aqui que há certa corrente doutrinária que não considera o município como ente integrante da federação, mas mera entidade administrativa.

Para José Afonso da Silva, os municípios são meras divisões dos Estados, praticamente autarquias territoriais. Não é a visão prevalecente, todavia. A faculdade de autoorganização e autogoverno, com competência legislativa exclusiva e suplementar, conferidas pela Constituição Federal, dão ao Município feição de ente federativo. Segundo Joaquim de Castro Aguiar, “a isonomia dessas pessoas constitucionais (União, Estados-membros e Municípios) é da essência do regime federativo brasileiro”.

O estudo da evolução institucional mostra que o sistema eleitoral hoje vigente é fruto da incansável busca pelo aprimoramento e fortalecimento do regime democrático. A atuação da Justiça Eleitoral é garantia para o bom funcionamento das engrenagens que movimentam os Poderes Executivo e Legislativo, nos três níveis, cujos componentes são eleitos para exercer mandatos em representação à vontade popular.

 

1. Câmara de Vereadores

A figura da municipalidade ajudou a construir a história de várias Repúblicas. A sua existência como unidade político-administrativa remonta aos tempos da República de Roma, quando esta estrutura começou a se desenhar para consolidar as conquistas romanas.

No Brasil, quando já independente de Portugal, mas ainda sob a forma de governo monárquico, criou-se, por meio da Constituição de 1824, as Câmaras Municipais nas cidades e vilas existentes e também nas que estavam por vir.

Na época, essa instituição foi composta por pessoas escolhidas na comunidade e era presidida pelo vereador mais votado. Até então, cabia-lhe tão somente o governo econômico, a formação das posturas policiais e a aplicação das receitas.

E a manutenção da Câmara de Vereadores, agora com maior importância, foi um símbolo muito potente a comprovar a autonomia da municipalidade. Essa instituição hoje se traduz no Poder Legislativo do próprio município, dando-lhe capacidade de editar suas respectivas leis na forma que melhor lhe convier. A propósito, é inegável o papel nobilíssimo conquistado ao longo do tempo e consagrado pela Constituição Federal ao vereador.

Originário do grego antigo, o vocábulo vereador vem da palavra “verea”, que significa vereda, caminho. O vereador, portanto, seria o que vereia, trilha, ou orienta os caminhos. Ele é a ligação entre o governo e o povo.

E essa atuação é possibilitada também pelo trabalho da Justiça Eleitoral, que, por meio de suas estruturas, assegura o livre exercício do voto, prática que remonta ao tempo do Brasil Colônia. O voto é um direito herdado da tradição portuguesa, que tinha por hábito eleger os administradores dos povoados sob domínio luso. Os colonizadores portugueses, mal pisavam a nova terra descoberta, passavam logo a realizar votações para eleger os que iriam governar as vilas e cidades que fundavam.

Os bandeirantes, por exemplo, iam em suas missões imbuídos da ideia de votar e de serem votados. Quando chegavam ao local em que deveriam se estabelecer, seu primeiro ato era realizar a eleição do guarda-mor regente. Somente após esse ato eram fundadas as cidades, já sob a égide da lei e da ordem. Eram estas eleições realizadas para governos locais.

No entanto, àquela época havia uma certa dúvida quanto ao real resultado da escolha popular.

A segurança foi conquistada em 1916, quando o então Presidente Wenceslau Brás, preocupado com a seriedade do processo eleitoral, sancionou a Lei 3.139, que entregou ao Poder Judiciário o preparo do alistamento eleitoral. Aqui foi o ponto de partida para a criação da Justiça Eleitoral, que veio a acontecer em 1932. Este ramo especializado de Justiça sempre teve como princípio a nortear seu trabalho a moralização das eleições.

Já a rapidez foi adquirida por meio da informatização da Justiça Eleitoral, prevista no primeiro Código Eleitoral brasileiro, criado na mesma época. Esse instrumento legislativo estabeleceu uma série de medidas para sanar os "vícios eleitorais". E previu o uso da máquina de votar. Esse foi o embrião da urna eletrônica.

Após, seguindo o projeto de modernização do processo eleitoral, em 1986, na presidência do Ministro Néri da Silveira foi realizado o recadastramento eletrônico de aproximadamente 70 milhões de eleitores e posteriormente, em 1994, fez-se, na gestão do Ministro Sepúlveda Pertence, pela primeira vez, a totalização das eleições gerais pelo computador central, no Tribunal Superior Eleitoral.

Importante reconhecer, portanto, que desde sua criação, a Justiça Eleitoral não poupa em envidar, com obstinação, esforços para ultrapassar as constantes mudanças e críticas que afetam suas rotinas de trabalho.

Retornando à abordagem da Câmara de Vereadores, menciona-se que uma importante obra de competência desse poder constituído é a elaboração da Lei Orgânica Municipal (LOM), que ganha o status de norma maior do ente político municipal.

Sua aprovação depende da concordância de dois terços dos membros, em votação de dois turnos, sendo dispensada a sanção do Poder Executivo Municipal.

O conteúdo da LOM é vital para reger a organização municipal, pois pode prever assuntos de interesse local, suplementação da legislação federal e estadual, instituição e arrecadação de tributos de sua competência; aplicação de suas rendas, criação/organização/supressão de distritos, organizar os serviços públicos de interesse local (diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, etc.). Enfim, a Lei Orgânica contribui para o município na mesma proporção da Constituição para a União.

No que pertine à composição da Câmara, o artigo 29 do texto constitucional, previu que ela é composta por vereadores, para mandatos de quatro anos, os quais são escolhidos em eleições diretas.

O número de integrantes da Câmara foi também definido em dispositivo constitucional, retirando, portanto, a possibilidade de Lei Orgânica Municipal regular essa questão, a não ser replicando o que já preconiza o artigo 29, inciso IV, de nossa Magna Carta.

Atualmente vige a regra de que municípios com até 15.000 habitantes terão 9 vereadores; de 15.001 a 30.000 habitantes, 11 vereadores; de 30.001 a 50.000 habitantes, 13; de 50.001 a 80.000, 15; 80.001 a 120.000 habitantes, 17 vereadores; 120.001 a 160.000, 19; de 160.001 a 300.000 habitantes, a Câmara será composta de 21 vereadores.

Destaque-se que a maior Câmara possível é aquela em que atuam 55 vereadores, nos municípios com mais de 8.000.000 de habitantes.

Há um nítido padrão na norma: na medida em que o número de habitantes do município cresce, dentro do piso e do teto constitucional, as cadeiras na Câmara Municipal sobem para duas a mais.

 

2. Justiça Eleitoral

Todo o processo de escolha dos candidatos até a diplomação dos eleitos é regido pela Justiça Eleitoral.

Trata-se de um órgão de jurisdição especializada que integra o Poder Judiciário. Segundo o artigo 1º, da CF/88, os órgãos que formam a Justiça Eleitoral são: o Tribunal Superior Eleitoral, os Tribunais Regionais Eleitorais, os juízes eleitorais e as juntas eleitorais.

Cada Estado da Federação e o Distrito Federal contam com a atuação de um TRE, sendo que, cada um, é composto de dois juízes dentre os desembargadores do Tribunal de Justiça do respectivo estado; dois juízes, dentre juízes de direito, escolhidos pelo TJ; um juiz do Tribunal Regional Federal com sede na capital, ou, não havendo, de um juiz federal; e dois juízes nomeados pelo Presidente da República dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Tribunal de Justiça.

A atuação da Justiça Eleitoral ganha maior evidência durante os anos eleitorais.

E, o marco inicial do período eleitoral está cravado na escolha dos candidatos em convenções partidárias. Essa regra vale para qualquer mandato eletivo, incluindo o de vereador.

Qualquer cidadão pode ser candidato ao cargo de vereador, desde que atenda aos seguintes requisitos, denominados condições de elegibilidade:

• Nacionalidade brasileira (os brasileiros natos ou naturalizados);

 • Pleno exercício dos direitos políticos;

• Alistamento eleitoral;

• Domicílio eleitoral na circunscrição pela qual pretende concorrer, por no mínimo 6 meses;

 • Filiação partidária a um partido político específico por no mínimo 6 meses;

 • Idade mínima de dezoito anos.

Um vereador, além de possuir a tarefa de editar leis, também desempenha outras funções de suma importância, tais como deliberar sobre assuntos da própria Câmara, que não pedem a participação do Prefeito, e fiscalizar o orçamento do município.

Para exercer com maior autonomia suas atribuições, os vereadores gozam de algumas prerrogativas.

A Constituição Federal, por exemplo, outorgou-lhes imunidade material, que consiste na inviolabilidade de suas opiniões, palavras e votos, no desempenho do mandato e no âmbito do território municipal (art. 29, VIII).

A garantia da inviolabilidade acoberta o vereador quando estiver atuando no Plenário ou nas comissões da Edilidade e o resguarda em todo o território municipal, desde que a sua opinião/atuação aconteça no exercício de seu mandato.

Esse mister tão essencial à existência de nossa República Federativa e de nosso regime democrático é sistematicamente protegido pelo arcabouço legislativo existente no Brasil.

No âmbito da legislação eleitoral, muitos são os cuidados destinados àqueles que abraçam o mister político, inclusive os vereadores.

Tais cuidados são revelados por meio das várias normas que limitam sua atuação enquanto candidatos. São responsabilidades que lhe são conferidas com o intuito de resguardar nosso bem maior: a democracia, que no pleito eleitoral se traduz com a manutenção da igualdade de oportunidades entre os candidatos, da manifestação livre e consciente do eleitor e do uso escorreito dos recursos arrecadados durante a campanha.

É nesse ponto que se revela essencial a relação entre a Justiça Eleitoral e o Poder Legislativo Municipal, visto que a realização das eleições e a apuração dos votos possibilitam a escolha dos representantes do povo nas Câmaras de Vereadores, por meio de um processo eletrônico de votação.

Os Tribunais Regionais Eleitorais exercem ainda a fiscalização das campanhas eleitorais, garantindo o cumprimento das leis para que a disputa eleitoral ocorra de forma justa e equilibrada.

A Corte Regional realiza também julgamentos de processos de competência originária e recursal, referentes aos feitos relacionados às eleições gerais e municipais.

Portanto, a Justiça Eleitoral, em auxílio indispensável à manutenção do regime democrático, atua, sempre que conclamada, coibindo práticas ilícitas em campanha.

Ela se sustenta em dois pilares: a administração das eleições e a fiscalização dos protagonistas do processo eleitoral quanto ao fiel cumprimento da legislação, seja na esfera cível ou criminal-eleitoral.

À Justiça Eleitoral compete responder aos questionamentos em ações próprias sobre a prática de ilícitos durante o período eleitoral.

Esses instrumentos processuais são iniciados pelos agentes fiscalizadores do pleito eleitoral, que auxiliam a Justiça Eleitoral na entrega de uma eleição segura e sem máculas.

A fiscalização do processo eleitoral é um papel não apenas restrito ao representante do Ministério Público Eleitoral. O cumprimento da lei é também controlado pelos partidos políticos, coligações, candidatos e eleitores.

Assim, quando estes agentes possuem notícia de algum fato supostamente irregular, podem se valer de instrumentos processuais que permitirão a averiguação das circunstâncias, dos envolvidos, devendo os juízes eleitorais aplicar a lei ao caso concreto.

Na seara criminal eleitoral, por exemplo, a Justiça Eleitoral está atenta às atuações que destoam do que fora desejado pela Lei.

Assim, por exemplo, por várias vezes, o Tribunal Regional Eleitoral de Goiás já foi convocado a se manifestar em hipóteses de captação de sufrágio, que, caso comprovadas, podem resultar em condenações criminais, com restrição à liberdade daquele que praticou o crime.

Isso porque, a captação ilícita de sufrágio encontra previsão expressa no Código Eleitoral, artigo 299, por meio da figura do tipo penal denominado corrupção eleitoral. Referido dispositivo almeja resguardar a liberdade no exercício do voto.

Já na esfera cível eleitoral, as principais ações são a Ação de Impugnação ao Registro de Candidatura, a Ação de Investigação Judicial Eleitoral, o Recurso Contra Expedição de Diploma, a Representação Eleitoral e a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo.

À exceção da primeira, que está adstrita ao não cumprimento de todas as condições de elegibilidade e à existência de inelegibilidades e resulta tão somente em impedimento de alguém se candidatar ou cassação de registro de candidatura, as demais buscam eminentemente coibir as práticas de captação ilícita de sufrágio, condutas vedadas ao agente público, captação ilícita de recursos, irregularidades na propaganda, gastos ilícitos de recursos e abuso de poder.

Essas ações possuem como objetivo maior proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício da função, cargo ou emprego na administração pública direta e indireta.

Um dos ilícitos eleitorais que mais demandam julgamentos da Corte Eleitoral é a captação ilícita de sufrágio, prevista no artigo 41-A, da Lei nº 9.504/97.

Também conhecido como compra de votos, este ilícito eleitoral pode ser apurado em praticamente todos esses instrumentos processuais, além da ação penal eleitoral, já que pode se enquadrar no tipo “corrupção eleitoral.”

Tem se tornado rotina nas sessões plenárias do Tribunal, o julgamento de casos de doação de combustíveis no município, durante o pleito eleitoral, por candidatos.

A jurisprudência tem tratado este gasto eleitoral com maior rigor, sendo certo que, a distribuição massiva, indeterminada, indiscriminada e injustificada de combustível a eleitores pode culminar no reconhecimento da captação ilícita de sufrágio e, mais, do abuso de poder econômico.

Já para a configuração da captação ilícita de sufrágio são necessários: a) a prática de pelo menos um dos verbos contidos no artigo 41–A da Lei 9.504/1997 (doar, oferecer, prometer ou entregar bem ou vantagem); b) que a conduta seja direcionada ao eleitor; c) a finalidade de obtenção do voto; d) que seja realizada durante o período de campanha eleitoral.

Na captação ilícita de sufrágio, ou compra de votos, o beneficiário da ação do candidato deve ser, necessariamente, o eleitor. Do mesmo modo, a compra de votos só se torna juridicamente relevante no curso do processo eleitoral quando realizada por efetivo candidato, o que só se verifica entre a data do pedido de registro de candidatura e as eleições, excluindo-se a figura do pré-candidato.

Cabe ressaltar também que, para a caracterização de compra de voto, o bem ou a vantagem oferecida pelo candidato deve ser pessoal, isto é, deve se referir uma situação de melhoria na esfera privada do eleitor, de sorte a carrear-lhe benefício individual.

Assim, por exemplo, se o candidato fizer promessa de campanha, de forma genérica, na tentativa de conquistar o voto do eleitor, não estará configurada a situação fática prevista no artigo 41-A.

Caso comprovada esta prática nefasta, o candidato pode ser sancionado com multa (no valor de mil a cinquenta mil UFIR’s) e cassação do registro ou do diploma.

Por outro lado, a captação ilícita de sufrágio e o abuso do poder econômico, apesar de semelhantes, não se confundem.

O abuso do poder econômico é a vantagem dada a uma coletividade de eleitores, beneficiando-os pessoalmente ou não, com a finalidade de obter-lhes o voto. Nas palavras do Tribunal Superior Eleitoral, a configuração do abuso pode ocorrer quando o candidato despender de recursos patrimoniais, públicos ou privados, dos quais detém o controle ou a gestão em contexto revelador de desbordamento ou excesso no emprego desses recursos em seu favorecimento eleitoral (RO nº 2346/SC, Rel. Min. Felix Fischer, DJE de 18.9.2009).

Entre os diversos exemplos do conceito elástico de abuso do poder econômico, podemos citar o fornecimento de material de construção, a oferta de tratamento de saúde, o uso indevido dos meios de comunicação social, a distribuição de cestas básicas, todos voltados para o benefício de candidatura.

A condenação pela prática de abuso do poder econômico, diferentemente da captação ilícita de sufrágio, acarreta inelegibilidade, além de cassação do registro ou diploma, e não há previsão de multa.

Quanto ao objeto protegido, há ainda uma substancial diferenciação. Na compra de votos, busca-se proteger a liberdade de voto do eleitor, ao passo que, no abuso de poder, o bem tutelado é a legitimidade das eleições.

Outro ponto que exige esforço da Justiça Eleitoral, refere-se à coibição das condutas vedadas a agentes públicos.

O artigo 73 da Lei nº 9.504/97 elenca um rol de ações proibidas àqueles que são agentes públicos.

Para o legislador, enquadra-se na figura dos agentes públicos qualquer um que exerça, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nos órgãos ou entidades da administração pública direta, indireta ou fundacional.

Para os agentes públicos em campanhas eleitorais, situação em que se encaixam os vereadores, certas condutas são vedadas, para não comprometer a igualdade dos candidatos e preservar a normalidade e legitimidade das eleições contra o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (CF, art. 14, § 9º).

Entre as principais proibições estão a proibição a qualquer candidata ou candidato de comparecer a inaugurações de obras públicas, como também, na realização de inaugurações, a contratação de shows artísticos pagos com recursos públicos.

Outra vedação é a realização de publicidade institucional dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública, assim reconhecida pela Justiça Eleitoral. Continua liberada, porém, a propaganda de produtos e serviços que tenham concorrência no mercado.

Também não é permitida ao gestor ou gestora, a transferência voluntária de recursos da União aos Estados e municípios e dos Estados aos municípios “ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou de serviço em andamento e com cronograma prefixado, bem como os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública”.

É proibida, também em período prescrito na lei, a nomeação e demissão de servidores (salvo de concurso homologado até esta data), supressão ou readaptação de vantagens e, ainda, remoção ou transferência de servidores, salvo em casos específicos descritos na legislação.

Caso constatada a prática dessas ilicitudes, as sanções possíveis são: multa, cassação do registro ou diploma e inelegibilidade para as eleições vindouras.

Concluindo e fazendo uso das palavras do jurista eleitoral Rodrigo López Zílio, “as condutas vedadas – na esteira de entendimento da doutrina e jurisprudência – constituem-se como espécie do gênero abuso de poder e surgiram como um antídoto à reeleição, a qual foi instituída através da EC nº 16/1997. Os atos de conduta vedada são espécies tipificadas de abuso de poder político, que se manifestaram através do desvirtuamento dos recursos materiais (incisos I, II, IV e § 10, do art. 73 da LE), humanos (incisos III e V, do art. 73 da LE), financeiros (incisos VI, a, VII, e VIII, do art. 73 da LE) e de comunicação (inciso VI, b, c, do art. 73 da LE) da Administração Pública (lato sensu).”

Outro tema que também sempre aporta nas bancadas de julgamento é a realização de captação e gastos ilícitos de recursos, prevista no artigo 30-A da Lei das Eleições.

O bem jurídico protegido é a higidez das normas relativas à arrecadação e gastos eleitorais. Ao criar essa regra, preocupou-se o legislador em elevar à proteção normativa específica a matéria relativa ao aporte de recursos e os respectivos gastos de campanha. Enfim, coibir a prática de “caixa dois” nas campanhas eleitorais.

A representação que tenha como causa de pedir o artigo 30-A não se vincula à desaprovação ou existência de ressalvas nas contas de campanha. Ela pode se fundamentar em outros elementos, fatos e provas que evidenciem irregularidades na arrecadação ou nas despesas de campanha.

Dessa forma, o julgamento das prestações de contas dos candidatos não vincula necessariamente o juiz para analisar o pedido de perda ou cassação de diploma com base na prática de arrecadação/gastos ilícitos de recursos em campanha eleitoral.

Esse ilícito eleitoral ganhou especial relevância nos Tribunais, considerando a utilização cada vez maior de recursos públicos em campanhas eleitorais, graças à criação do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), previsto nos artigos 16-C e 16 D da Lei nº 9.054/97.

Para a eleição de 2022, por exemplo, o valor do FEFC foi de R$ 4.961.519.777,00. Esse vultoso montante foi disponibilizado pelo Tesouro Nacional ao TSE em 1º de junho de 2020, nos termos da Lei nº 9.504/1997, art. 16-C, § 2º.

E, justamente por se tratar de recursos do povo destinados aos candidatos para executarem suas campanhas eleitorais, é natural que os órgãos fiscalizadores fiquem mais atentos à aplicação escorreita desses recursos e, caso detectem alguma irregularidade, batam nas portas da Justiça Eleitoral buscando a cassação do registro ou do diploma daquele que malversou recursos públicos de campanha.

Muitas são as restrições e proteções trazidas pela legislação e aplicadas pela Justiça Eleitoral, para manter a ordem democrática.

Além da atuação judicial, muitas outras ações de cunho administrativo são encaminhadas pela Justiça Eleitoral, assegurando uma eleição limpa, com rápida divulgação do resultado. Responsável pelo cadastro dos eleitores, pela constituição de juntas eleitorais, pela nomeação de mesários, pela distribuição de urnas e pela realização de diversos procedimentos que antecedem o pleito, os TREs executam ainda inúmeras providências nos dias da eleição e nos subsequentes, até a diplomação dos eleitos.

Aliás, a rapidez dos resultados, tão impactante, levando-se em consideração a dimensão continental de nosso país, é um dos maiores bens que conquistamos, graças ao surgimento da urna eletrônica. Esse instrumento digital é indispensável na oferta de um processo eleitoral seguro e que expresse fielmente a vontade do eleitorado.

Por certo, a Justiça Eleitoral utiliza o que há de mais moderno em termos de segurança da informação para garantir a integridade, a autenticidade e o sigilo do voto. Esses mecanismos eletrônicos foram postos à prova durante as seis edições do Testes Públicos de Segurança já realizadas pelo TSE, nos quais nenhuma tentativa de adulteração dos sistemas ou dos resultados da votação obteve êxito.

Além disso, há diversas ferramentas de auditoria e verificação dos resultados que podem ser efetuados por candidatos e coligações, entidades fiscalizadoras, como o Ministério Público (MP) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e até mesmo o próprio eleitor.

A urna eletrônica – reitere-se - utiliza o que há de mais moderno quanto às tecnologias de criptografia, assinatura digital e resumo digital.

Toda essa tecnologia é utilizada pelo hardware e pelo software da urna eletrônica para criar uma cadeia de confiança, garantindo que somente o software desenvolvido pelo TSE, gerado durante a Cerimônia de Carga e Lacre dos Sistemas Eleitorais, pode ser executado nas urnas eletrônicas devidamente certificadas pela Justiça Eleitoral.

Qualquer tentativa de executar software não autorizado na urna eletrônica resulta no bloqueio do seu funcionamento. De igual modo, tentativas de executar o software oficial em um hardware não certificado resultam no cancelamento da execução do aplicativo.

Soma-se a isso, o fato de que todos os dados que alimentam a urna eletrônica, assim como todos os resultados produzidos, são protegidos por assinatura digital.

Não é possível modificar os dados de candidatos e eleitores presentes na urna, por exemplo. Da mesma forma, não é possível modificar o resultado da votação contido no boletim de urna.

Nos últimos anos, a Justiça Eleitoral tem organizado eleições seguras, transparentes e muito rápidas, que têm servido de modelo e inspiração para todo o mundo.

As eleições e as urnas brasileiras são seguras e confiáveis, seja pelo trabalho árduo da Justiça Eleitoral, seja pelo efetivo acompanhamento de todo o processo pela sociedade.

E, ao final, para coroar todo o trabalho dispensado na realização do pleito eleitoral, realiza-se a sessão de diplomação dos eleitos.

A diplomação é o ato pelo qual a Justiça Eleitoral atesta que o candidato ou a candidata foi efetivamente eleito ou eleita pelo povo e, por isso, está apto ou apta a tomar posse no cargo. Nessa ocasião, ocorre a entrega dos diplomas, que são assinados, no caso dos vereadores, pelo presidente da junta eleitoral, isto é, o Juiz Eleitoral.

A entrega dos diplomas ocorre depois de terminado o pleito, apurados os votos, julgadas as prestações de contas dos candidatos eleitos e passados os prazos de questionamento e de processamento do resultado das eleições.

Não será diplomado o candidato ou a candidata cujo registro de candidatura tenha sido indeferido, mesmo que ainda esteja sub judice (art. 32 da Resolução nº 23.677, de 16 de dezembro de 2021).

Por outro lado, caso algum candidato tenha sido eleito, esteja com registro deferido, mas recaia sobre si algum Recurso contra Expedição de Diploma, a junta eleitoral deve diplomá-lo.

Isso porque, enquanto o Tribunal Superior Eleitoral não decidir sobre eventual recurso contra expedição do diploma, o diplomado ou a diplomada poderá exercer o mandato em toda sua plenitude (art. 216, do CE). Esse recurso está previsto no art. 262 do Código Eleitoral e deve ser interposto no prazo de três dias contados da diplomação.

A partir da diplomação, os eleitos estão prontos para tomar posse e então compor a Câmara de Vereadores. Assim, o início do mandato dos vereadores passa por uma etapa anterior, que conta com a participação ativa da Justiça Eleitoral.

 

Conclusão

Depreende-se, portanto, que, ao longo da história, a Câmara de Vereadores e a Justiça Eleitoral foram consolidando um papel essencial no fortalecimento do regime republicano.

Sublinhe-se, por oportuno, que não é o segmento religioso, nem o estamento militar, nem a categoria dos juízes que deve assumir a condução do projeto realizador do Estado brasileiro, mas sim os mandatários do Executivo e do Legislativo.

Isso não exclui o princípio da harmonia e autonomia de cada um dos poderes do Estado: o que julga, o que legisla e o que administra.

Desses, os mais cobrados pelo povo são o Executivo e o Legislativo. E o mais depreciado é o Legislativo. Injustamente, ressalve-se de logo! Basta citar os nomes de Ruy, de Mangabeira, de Capanema, de Tancredo Neves, de Paulo Brossard, de Ulisses Guimarães, de Alfredo Nasser e de Henrique Santillo. Grandes parlamentares, cujas ações modificaram os rumos da nossa história.

Diga-se, de passagem, que o “politicar” criou um dos grandes pilares da civilização moderna: a diplomacia. Sinônimo de fazer política, a diplomacia é a ciência de negociar, construir acordos entre os diferentes. Tem como âncoras a compreensão e a disposição para o diálogo.

Desse mister é que se ergue um dos alicerces dos regimes democráticos, cuja coroação se dá com a oportunização do voto aos cidadãos brasileiros.

O pleito eleitoral de 2022, por exemplo, trouxe grandes lições à Justiça Eleitoral. Se nas eleições de 2020 já se utilizou das redes sociais de forma tóxica, ignorando-se as regras eleitorais tendentes a preservação da ética, do equilíbrio e da igualdade, neste pleito mais recente agigantou-se o mau uso, com mensagens de ódio, de mentiras e preconceitos, reproduzidas em proporções inimagináveis, atacando a Justiça Eleitoral, injuriando os membros do STF e buscando descredibilizar o processo eletrônico de votação.

Foi-se instalando, um ambiente de antagonismo fundamentalista, visceral e antidemocrático, já visando repudiar o resultado das urnas, em caso de derrota, culminando as ações maléficas na depredação perpetrada nas sedes dos Poderes da República, em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023.

Estarrecidos com a violência da manifestação, porque acreditavam no pacifismo dos derrotados nas eleições, as lideranças dos Poderes, com apoio dos partidos de perfil democrático, se uniram e repudiaram com veemência os atos de vandalismo, buscando responsabilizar os invasores e encarcerando os mais violentos, dando provas da solidez da democracia brasileira. O mandatário que insuflara a rebeldia do segmento social foi declarado, pela Justiça Eleitoral, inelegível pelo período de oito anos. Prevaleceu o vigor da democracia e suas instituições.

A união entre os Poderes constituídos, cada qual funcionando plenamente dentro dos limites de suas atribuições legais e constitucionais, foi uma experiência moderna, e pode ser vivida em pleno ano de 2023, da tripartição idealizada por Montesquieu.

Este laboratório exitoso, segundo o qual um poder é complementar ao outro e nenhum se sobrepõe sobre os demais, nos permite, agora, desfrutar da liberdade, bem que nos concede o usufruto de outros direitos, nas palavras do próprio filósofo, escritor e político iluminista francês.

Desse momento a Justiça Eleitoral também não se esquivou, buscando incansavelmente encontrar mecanismos para garantir a lisura dos pleitos e a proclamação dos resultados ditos pelas urnas eletrônicas.

Graças a essa atuação, ela se tornou um importante patrimônio institucional do povo brasileiro, uma conquista indelével que auxilia na evolução da legislação eleitoral, por meio das interpretações ofertadas pelos Tribunais Regionais Eleitorais, e, ao cabo, indiretamente, na evolução da própria política brasileira.

 

Referências

 

Nota 01 Presidente do TRE-GO. Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás desde 2008. Natural de Uruaçu(GO). Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Mestre em Ciências Agrárias e Especialista em Processo Cível e História Social pela Universidade Federal de Goiás. Ingressou na Magistratura em 1982. Membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores, da Academia Goiana de Direito, da Associação Brasileira de Magistrados, do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, do Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis e da Academia de Letras de Uruaçu.

Nota 02 Técnico Judiciário, atualmente no cargo de Secretária-Geral da Presidência no TRE-GO. Natural de Jataí (GO). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional pela Universidade Potiguar. Ingressou no TRE-GO em 1998, tendo já exercido as seguintes atribuições: Assessora Jurídica da Presidência (2006/2007), Assistente VI do Gabinete de Juiz de Direito 1 (2008/2011) e do Gabinete de Jurista 1 (2011/2014), Coordenadora Jurídica da Vice-Presidência e Corregedoria (2014/2020), Secretária Judiciária (2020/2021).