Verba Legis 2023

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A democracia representativa brasileira: as virtudes e as debilidades da experiência de eleições proporcionais

por Américo Bedê Júnior Nota 01 e Rômulo Lago e Cruz Nota 02

 

Introdução

Democracia é um daqueles termos cujos significados podem-se apresentar por diferentes vertentes e por uma pluralidade de concepções. Na Ciência Política, como no Direito, não há como não se referir a tal classe de enunciado sem mencionar ao menos as dimensões atreladas ao conceito de soberania popular, segundo a qual todo poder emana do povo, consoante célebre assertiva do preâmbulo da Constituição norte-americana de 1787 que aduz “We the people the United States...” Nota 03.

A força motriz política que visa estruturar e legitimar a ordem instituída ou a instituir é a vontade soberana do povo. Assim, não apenas a Constituição, enquanto documento público solene, mas todo o conjunto de diversas expressões da realidade política de um determinado Estado soberano partem da vontade de um único sujeito político “o povo”.

Nesse contexto, a democracia constitucional é caracterizada pela fusão entre o pensamento e as tradições institucionais democráticas consolidadas pela humanidade e a Teoria da Constituição, buscando obter como produto a positivação de um texto constitucional que assegure um sistema bem definido de direitos e garantias humanas fundamentais; a repartição das funções de Estado em órgãos constitucionais, contendo atribuições específicas e bem delimitadas, com a previsão de mecanismos de freios e contrapesos; além de instrumentos de controle de constitucionalidade.

Ao lado desses três grandes pilares, é essencial, em uma democracia constitucional, que haja a garantia do voto livre e universal, assim como instrumentos que viabilizem, em determinada medida, a participação direta dos cidadãos nos destinos da Nação.

Dada a sua inegável relevância para qualquer democracia, as eleições precisam ser organizadas com muito rigor para que a soberania popular seja observada e que os indivíduos possam manifestar a sua vontade livremente e sem nenhum constrangimento, no exercício de um direito fundamental assegurado a todo cidadão brasileiro.

Daí porque a necessidade de se discutir o sistema eleitoral proporcional, porque, não raro, esse instituto é responsável por gerar alguns desconfortos e até mesmo perplexidade já que o eleitor não compreende como um candidato que obteve menos votos do que outro possa ser eleito para ocupar uma cadeira no parlamento.

Desse modo, o questionamento que se coloca é se o sistema de eleições proporcionais adotado no Brasil atende às relevantes finalidades institucionais para as quais esse modelo foi originalmente pensado?

Pretende-se, com isso, contribuir com o instigante debate que vem sendo travado pela sociedade brasileira em torno da reforma política, na intenção de aprimorar o modelo vigente e construir soluções constitucionalmente adequadas que proporcionem maior qualidade e elevem o nível das discussões a respeito do futuro do País.

 

1. O modelo de democracia representativa

A democracia representativa deve ser compreendida como um produto da engenharia moderna do século XVIII, mediante o qual as pessoas elegem seus representantes, encarregando-os de discutir as questões públicas e, em nome do povo, fazer as escolhas essenciais à condução do poder político”. Nota 04

A consolidação do Estado de Direito alcançou um nível tal de complexidade, porque além de estabelecer o compromisso burguês com a preservação das liberdades individuais, especialmente a não intervenção nas relações comerciais, era premente a necessidade de organizar e estruturar a arquitetura das instituições públicas. Ora, dada a larga base territorial e a crescente densidade populacional que esses Estados-nações adquiriram, seria impossível reunir todos os cidadãos individualmente considerados para deliberarem, com discussões e debates, como na antiga Grécia” Nota 05.

Assim, foi necessário cunhar uma modalidade através da qual o povo, fonte primária do poder, elege periodicamente seus representantes para exercerem o governo em seu nome?. Esse modelo de democracia representativa, entretanto, está condicionado ao atendimento dos requisitos de periodicidade, consistente na possibilidade de haver alternância de grupos políticos no poder — ressalvada a intangibilidade dos direitos fundamentais contra eventuais maiorias —, e de responsabilidade, que é a circunstância de os mandantes poderem fiscalizar os mandatários (PEDRA, 2016, p. 240-241) Nota 06.

Esse modelo de democracia, baseado exclusivamente na outorga de mandato político aos representantes eleitos, traz uma incontável série de embaraços que somente podem ser temperadas com a adoção de mecanismos que permitam, em certa medida, a participação popular efetiva em algumas situações bem delimitadas.

 

2. O sistema eleitoral proporcional

Com a expansão da democracia representativa no Ocidente e o surgimento de sociedades cada vez mais complexas, provocado pelo advento das revoluções industriais na Europa, a partir de meados do século XIX, movimentos sociais de massa, especialmente de trabalhadores buscando melhores condições de trabalho e de vida, influenciados cada vez mais pelas doutrinas marxistas de luta de classes, começaram a se organizar e a formar novos partidos políticos para disputar eleições” Nota 07.

Ao lado disso, outro fenômeno igualmente importante consistiu na ampliação do direito ao voto, que passou a abranger operários e outras categorias que jamais tinham tido voz na seara política. Esse foi um fator preponderante para fomentar a discussão em torno da necessidade de ampliar o espectro de participação eleitoral de modo a permitir que essas minorias pudessem ser representadas no parlamento” Nota 08.

O sistema eleitoral proporcional surgiu da necessidade de fazer com que a mais ampla gama de pensamentos, tendências e correntes ideológicas pudesse se fazer representar no parlamento. As minorias precisavam ter espaço no cenário político, porém a fórmula até então vigente impedia que isso ocorresse, pois favorecia os partidos e agremiações que, efetivamente, já eram detentores do poder e da liderança política.

O arranjo encontrado foi viabilizar alternativas ao sistema majoritário. Surgiram, então, as fórmulas proporcionais, que são aquelas que atribuem mandatos em função, não de uma maioria, mas de uma quota ou quociente eleitoral, normalmente dependente do número de votos válidos, mas que pode, em casos raros, ser fixado previamente (SILVA, 1999, p. 52).

 

3.1 As virtudes e debilidades da experiência de eleições proporcionais

Os aspectos positivos são variados, a começar pela possibilidade de conferir às minorias igual possibilidade de disputar e ascender aos cargos públicos eletivos no parlamento. Bonavides afirma (2014, p. 269) que isso constitui “alto penhor de proteção e defesa que o sistema proporciona aos grupos minoritários, cuja representação fica desatendida pelo sistema majoritário” Nota 09.

Outro ponto digno de consideração é que o sistema eleitoral proporcional favorece a criação e o desenvolvimento de novas agremiações partidárias, representativas da maior diversidade de pensamento que permeia as sociedades complexas, o que contribui para o reconhecimento e a ampliação do pluralismo político, marcado pela coexistência de diferentes pontos de vistas e perspectivas de mundo Nota 10.

Ademais, o aumento da influência dos partidos políticos na escolha dos candidatos, e, via de consequência, sobre os destinos da Nação, consolidou-se de tal maneira que se tornou impossível para os ocupantes do Poder Executivo das diversas esferas políticas (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) governarem e estabelecerem as suas prioridades sem reunir uma ampla frente parlamentar composta por diversas agremiações que possam oferecer sustentação aos projetos encaminhados ao parlamento. Esse fenômeno, em certa medida, pode ser compreendido como positivo porque pulveriza as estruturas de poder e impede a sua concentração em torno de uma única legenda ou indivíduo.

Loewenstein, contudo, adverte que o sistema proporcional debilitou-se consideravelmente nos últimos anos e encontra-se atualmente mergulhado em uma grave crise marcada, especialmente, em razão de tal fórmula garantir que o governo e os partidos políticos exerçam considerável influência sobre a composição do futuro parlamento, e aduz (1982, p. 342) “El sistema proporcional ofrece a los partidos, que cuando se encuentran en el poder pueden dictar la ley electoral, posibilidades infinitas de adaptar-la a todas sus necesidades. Y de estas oportunidades de corriger la fortune se hará uso com toda crudeza”.

O teórico afirma que a aplicação prática do sistema proporcional revelou-se um remédio pior do que a enfermidade a curar, e apresenta os inconvenientes do sistema da seguinte forma (1982, p. 341):

el alejamiento de los electores de la política em virtud del dominio de los partidos políticos sobre el proceso electoral, el monopolio de la oligarquia del partido en la selección de los candidatos y en la determinación del orden de la lista electoral, la mecanización del proceso político, la escisión de la voluntad del electorado por la aparición de multitud de partidos y, finalmente, la dificultad de formar en una asamblea dividida por la existencia de muchos partidos un gobierno estable, ya que éste se ve obligado a buscar apoyo en grupos pequefios y más pequefios. Las medidas para eliminar los llamados “partidos astillas” fueran ineficaces o estaban en desacuerdo con los principios democráticos, prescindiendo, por otra parte, de que tendian a favorecer a los partidos antiguos a costa de los nuevos grupos. A esto hay que afiadir que el sistema proporcional puede conducir a congelar los alineamientos políticos y las relaciones de fuerza de los partidos políticos existentes.

Uma objeção muito debatida consiste na circunstância de o modelo eleitoral brasileiro favorecer a criação de uma multiplicidade de agremiações políticas, o que dificulta a governabilidade e provoca uniões pouco prováveis de ocorrerem entre legendas de perfis ideológicos completamente distintos, mas que encontram na possibilidade de coligação um interesse comum de fazer-se ascender ao parlamento, promovendo o que Bonavides chama de (2014, p. 270) “uniões intrinsecamente oportunistas”.

Todavia, há que se notar um detalhe muito importante. A peculiaridade do sistema proporcional baseado na possibilidade de conformação de diversos partidos políticos representantes das distintas opiniões e visões de mundo e, portanto, da própria noção de pluralismo político, consubstancia, a um só tempo, uma característica positiva do modelo, mas, se levada ao extremo, poderá significar a completa ausência de governabilidade e ao reino da instabilidade política, porquanto resultará em um governo desprovido de expressiva e sólida maioria nas casas legislativas, que, em razão disso, não poderá fazer avançar o seu plano de ação através da implementação de seus programas e das políticas públicas que se propôs a concretizar Nota 11.

Na precisa intervenção de Barbosa Lima Sobrinho (1956, p. 73), quando se “exagera essa distribuição dos restos, no sentido de atender a grupos eleitorais menos expressivos, divide-se de tal modo a assembleia, que a tarefa de governar passa a depender das combinações, ou conchavos, que se estabeleçam entre as forças partidárias”.

Seabra Fagundes, por sua vez, tece duras críticas ao modelo eleitoral adotado no Brasil, advertindo que é necessário restringir-se a criação de novos partidos, não pela adoção de um critério simplista, que importasse numa discriminação entre eles, mas, pelo menos, exigir que só possa sobreviver o partido que numa ou duas eleições gerais tenha conseguido manter as condições que lhe eram exigidas inicialmente ou outras mais que se possam acrescentar (1956, p. 25), e mais adiante pontua em relação à aliança de partidos, aduzindo (1956, p. 27) “parece-me que elas, no plano das eleições de voto proporcional, são um desastre”. Segundo ele, as experiências têm provado que elas precisam ser proibidas terminantemente, “porque elas determinarão o extermínio natural dos partidos que jogam tão-somente como fiés de balança, decidindo entre os grandes partidos”.

Essas objeções não deixam de ser pertinentes e revelam os grandes entraves para o desenvolvimento do modelo eleitoral entre nós. Todavia, não se deve olvidar que o aprimoramento de tal sistema deve ser uma tarefa de todos, governo, agremiações políticas, Justiça Eleitoral, Ministério Público Eleitoral, mas também dos eleitores, que serão os principais atingidos por eventuais mudanças no cenário legislativo Nota 12.

O processo de aperfeiçoamento do sistema eleitoral proporcional é dinâmico e aberto à participação do maior número de pessoas, os quais muito poderão contribuir não apenas com ideias e propostas, mas também vivenciando uma nova forma de interagir nas eleições Nota 13.

 

3.2 A distinção dos sistemas eleitorais: os critérios fundados em uma regra decisória e no princípio representativo

Dieter Nohlen distingue os critérios classificatórios dos sistemas eleitorais em dois grandes grupos, o primeiro baseado em critérios técnicos e o outro fundado em critérios principiológicos (1981, p. 79).

Por essa proposta, pelo sistema majoritário, considera-se um candidato eleito quando este alcançar a maioria dos votos válidos em uma determinada eleição. Essa classificação se dá por meio de um critério do tipo técnico que o autor chama de “regra decisória”, através da qual se converte votos em cadeiras.

A seu turno, pelo sistema proporcional, distribuem-se tantas cadeiras quanto for o número equivalente de votação que cada legenda obtiver no pleito. Aqui não há propriamente referência a uma regra decisória, mas ao princípio representativo, que é a razão de ser do modelo, a sua finalidade última (NOHLEN, 1981, p. 79).

Essas regras jamais poderão ser consideradas inadequadas, porém precisam ser observadas de per si. O erro mais comum consiste em combinar esses critérios inadvertidamente em hipóteses nas quais não se admite a mistura. Nohlen é taxativo a esse respeito.

Assim, diante de uma eleição proporcional, assevera Silva, se a regra decisória é a forma de transformação de votos em mandatos, pode-se afirmar que a regra decisória será aquela que determina que a distribuição das cadeiras será determinada por uma quota ou um quociente (q), e não por uma maioria, o que significa que um partido consegue tantos mandatos quantas vezes seu número total de votos contiver q (1999, p. 76)Nota 14.

A regra decisória relaciona-se com o princípio representativo em uma relação de meio e fim, de modo que a regra decisória, segundo Nohlen, é o meio para se atingir o princípio representativo desejado. Se um modelo eleitoral adotar a regra decisória majoritária, fica evidente que se ajusta ao princípio representativo majoritário — formação de maiorias parlamentares (1981, p. 102-103).

No entanto, a regra decisória tem uma importância secundária na opção por um sistema eleitoral, pois se existe uma opção constitucional por um dado sistema, isso significa que os constituintes fizeram uma opção por um princípio representativo e não por uma simples regra que pode, em alguns casos, não se coadunar com o princípio desejado (SILVA, 1999, p. 76).

Por esse raciocínio, no Brasil, v.g., cuja Constituição prevê o sistema proporcional para eleger membros da Câmara de Deputados, das Assembleias Legislativas dos Estados e das Câmaras de Vereadores Municipais, é possível alterar o mecanismo eleitoral para adotar o sistema proporcional personalizado alemão Nota 15, pois essa fórmula assegura resultados proporcionais.

A finalidade do sistema, consistente no princípio representativo, sobrepõe-se ao meio, que é a regra de decisão. O importante, segundo Nohlen, o que de fato irá determinar se um sistema é majoritário ou proporcional são os seus efeitos e não a regra técnica aplicada (1981, p. 80).

A evidência, seria uma contraditio in terminis falar-se em sistema eleitoral misto, pois, como esclarece Silva (1999, p. 78)

não obstante poder haver uma enorme variação, e mesmo mistura, nos critérios de transformação de votos em mandatos (regra decisória), devido à livre possibilidade de combinação de métodos, de novas construções de sistemas aritméticos etc., no campo do princípio representativo há somente duas opções, a serem escolhidas de maneira exclusiva: ou se busca a formação de maiorias parlamentares (princípio majoritário) ou se objetiva um poder legislativo que reflita, de maneira fiel, as diversas correntes de pensamento existentes na sociedade (princípio proporcional).

Assim sendo, distingue-se claramente entre dois grandes sistemas eleitorais, os majoritários e os proporcionais. Os majoritários, afirma Silva, fomentam a formação de maiorias parlamentares e que, por isso, atendem ao princípio representativo majoritário e, de outro, os sistemas que buscam uma representação de cada força conforme seu peso político e que, por isso, atendem ao princípio representativo proporcional (1999, p. 77).

 

3.3 As finalidades institucionais do sistema proporcional

Horowitz esclarece que o modelo de eleições proporcionais prestam-se a cumprir seis objetivos institucionais. São eles: proporcionalidade de cadeiras para votos; prestação de contas aos constituintes; governos duráveis; vitória do “vencedor Condorcet”; conciliação interétnica e inter-religiosa; e escritórios minoritários.

Pelo primeiro objetivo, o autor afirma que o sistema eleitoral é julgado por sua capacidade ou incapacidade de produzir resultados proporcionais, de maneira que se um partido político obtém 20% do total dos votos, deve-lhe ser reservado o mesmo percentual do total de assentos, ao invés de poucos ou nenhum assento, que poderá receber se as eleições forem realizadas com base no círculo eleitoral e seu apoio é espalhado ao invés de concentrado regionalmente. Seguindo-se o mesmo raciocínio, um partido que obtém 50% dos votos, deve obter 50% dos assentos, e não 60% ou 65%, que pode receber em sistemas eleitorais que oferecem um bônus de assento inadvertido ao maior partido (2003, p. 116-117).

A equidade de resultado, no sentido de proporcionalidade de assentos aos votos, é apenas um entre vários objetivos, e pode não ser o objetivo mais importante. Por ser facilmente mensurável, entretanto, a proporcionalidade, tende a se sobrepor a outras metas (HOROWITZ, 2003, p. 117).

Já pelo segundo objetivo, exsurge a ideia de responsabilidade entre o representante eleito e seus eleitores. Os sistemas eleitorais que limitam o poder dos líderes do partido de escolher candidatos produzem representantes mais comprometidos com os eleitores. Segundo Horowitz (2003, p. 117)

É pensamento comum que sistemas eleitorais que limitam o poder dos líderes do partido central em relação aos candidatos produzem representantes mais responsáveis. O sistema de representação proporcional de lista nacional geralmente repõe grande poder nos líderes partidários para decidirem quais candidatos terão posições favoráveis nas listas dos partidos e, assim, terão melhores chances de serem eleitos. Quando os líderes centrais do partido têm tal poder, acredita-se que a soberania do eleitor para escolher os candidatos, em vez de apenas escolher entre os candidatos, resta prejudicada (tradução livre).

Existem algumas formas de mitigar o poder dos líderes centrais do partido sobre a lista. Uma forma consiste em permitir que os eleitores alterem a ordem dos candidatos na lista, votando no candidato 6 ao invés do candidato 3 da lista, por exemplo. Isso é chamada de representação proporcional de lista aberta (2003, p. 117).

Com relação ao intento de produzir governos duráveis, diz Horowitz, como a representação comporta muitas nuances de opinião, é necessário haver coalizão. Outros sistemas podem forçar os partidos a agregar as diversas opiniões em uma sociedade em prol do sucesso eleitoral. Governos duráveis são desejáveis porque promovem a consistência e a responsabilidade das políticas e, ainda mais importante, podem evitar a instabilidade que pode resultar durante o interregno ou a criação de coalizões frágeis e imprevisíveis.

Quanto à quarta finalidade institucional, o autor explica que o vencedor do Condorcet é o candidato que receberia a maioria dos votos em uma disputa acaso esta se polarizasse contra um segundo adversário. Então, ele é o candidato mais popular, que venceria a eleição Nota 16. Contudo, como geralmente, há mais de dois candidatos na disputa, é possível que alguns sistemas produzam resultados que desfavoreçam o vencedor do Condorcet. Isso pode levar a um sentimento de desconfiança e descontentamento no eleitorado e para mitigar esses efeitos tanto o voto alternativo quanto a regra de Coombs Nota 17 são institutos que suscitam segundas preferências (2003, p. 118).

Por sua vez, o quinto objetivo perseguido pelo sistema proporcional deve proporcionar ferramentas aos políticos e incentivos eleitorais para adotarem um comportamento moderado, isto é, para que formulem compromissos com membros de outros grupos étnicos em prol do sucesso eleitoral Nota 18. Para que se promova a conciliação interétnica, é necessário que o sistema eleitoral afete os cálculos pré-eleitorais de partidos e políticos (HOROWITZ, 2003, p. 118).

No que concerne ao último objetivo, afirma Horowitz, todos os grupos da sociedade, mesmo as minorias, devem ter representação equivalente ao seu tamanho e dimensão. Se um grupo representa 10% de uma sociedade, o sistema eleitoral deve proporcionar-lhe o mesmo percentual de representantes no parlamento, ou seja, o sistema deve produzir uma parcela de candidatos eleitos proporcional à parcela minoritária da população que representam (2003, p. 119) Nota 19.

 

3.4 O modelo institucional brasileiro e as finalidades do sistema eleitoral proporcional

Analisando cada uma dessas finalidades institucionais do sistema eleitoral proporcional, pode-se afirmar que o modelo eleitoral adotado no Brasil atende ao primeiro objetivo, tendo em vista que ele viabiliza a representação proporcional ao número de votos obtidos pelos candidatos, favorecendo a diversidade, que é uma característica marcante da sociedade brasileira.

Todavia, nosso sistema não detém mecanismos que assegurem a efetiva prestação de contas dos atos dos parlamentares, no exercício do mandato, aos seus constituintes, sendo certo que, não raras vezes, o comportamento do parlamentar é quase que integralmente conformado pelos partidos políticos e suas respectivas lideranças nas casas legislativas.

Por outro lado, o sistema eleitoral brasileiro permite a construção de amplas coalizões pré-eleitorais e após a eleição para viabilizar a governabilidade, e, portanto, contempla o terceiro objetivo apontado por Horowitz Nota 20.

Nosso sistema, entretanto, não contempla regras para favorecer a vitória do “vencedor Condorcet”, e não raras vezes ocorre a situação de determinado candidato atingir um número expressivo de votos, porém não ser eleito, e outro candidato, a seu turno, receber menos votos e lograr êxito na disputa, o que acaba por gerar desconfiança e perplexidade no imaginário dos eleitores.

A representação proporcional à brasileira também não atende ao objetivo de formar conciliações interétnicas, pois não existem regras eleitorais que exijam do candidato buscar apoios em grupos sociais distintos dos que ele representa. Porém, atende o objetivo de constituir escritórios minoritários, pois viabiliza a representação de todos os segmentos da sociedade, inclusive os minoritários que buscam reconhecimento e integração.

Desse modo, pode-se afirmar que o sistema eleitoral brasileiro atende três dos seis objetivos apontados por Horowitz — proporcionalidade de cadeiras para votos; governos duráveis; e composição de escritórios minoritários.

4. Conclusão

O processo de aperfeiçoamento do sistema eleitoral proporcional é dinâmico e aberto à participação do maior número de pessoas, os quais muito poderão contribuir não apenas com ideias e propostas, mas também vivenciando uma nova forma de interagir nas eleições.

Nesse sentido, a proposta do presente estudo foi analisar as virtudes e as debilidades do modelo de eleições proporcionais adotado no Brasil a partir da confrontação entre o arranjo eleitoral que se construiu ao longo dos anos e as finalidades institucionais para as quais esse modelo foi originalmente pensado.

Essa metodologia tornou possível identificar que, em terra brasilis, nem todos os objetivos desse sistema foram alcançados. Somente três das seis finalidades do modelo de eleições proporcionais restaram atendidas, o que demonstra, a princípio, que ainda existe um longo percurso a trilhar no sentido de aperfeiçoar as regras de escolha e distribuição das cadeiras nos parlamentos.

Esses dados justificam a posição de amplos setores da sociedade brasileira preocupados em discutir seriamente a reforma política e como a busca por instrumentos e mecanismos alternativos ao modelo vigente deve ser orientada no sentido de construir um arranjo institucional que permita, a um só tempo, não apenas o amplo acesso da diversidade de representantes da sociedade nos legislativos, mas também respostas que viabilizem, especialmente, um controle mais rígido do eleitor em relação à atividade parlamentar e a conciliação interétnica e inter-religiosa.

 

 

Referências

Nota 01 Doutor em Direitos Fundamentais pela FDV/ES (2014). Mestre em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais pela FDV/ES (2004). Professor de Processo Penal na FDV/ES. Juiz Federal Titular da 2º Vara Criminal de Vitória/ES. E-mail: bedejunior@hotmail.com

Nota 02 Doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV/ES. Mestre em Garantismo y Proceso Penal pela Universitat de Girona (2020) e em Direito e Gestão de Conflitos pela Unifor (2019). Juiz de Direito do TJMA. E-mail: rrjamp@gmail.com

Nota 03 “Nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma união mais perfeita, estabelecer a Justiça, garantir a tranquilidade doméstica, proporcionar a defesa comum, promover o bem-estar geral e garantir as bênçãos da liberdade para nós e nossa descendência, promulgamos e estabelecemos essa Constituição para os Estados Unidos da América” (tradução livre). A Constituição Brasileira de 1988 encerra a mesma ideia de soberania popular no texto do artigo 1º, p. único.

Nota 04 O surgimento dos Estados modernos, marcado pela necessidade de rompimento com uma certa ordem transcendental e divina que marcava a tradição, os usos e costumes da prática do direito, levou a racionalidade das ciências ao centro do sistema jurídico, no sentido de que somente através de processos racionais poder-se-ia conceber um ordenamento de leis gerais e abstratas que contemplasse os ideais de liberdade e igualdade e fosse oponível a todos indistintamente, dando início à construção de uma nova era, que o movimento constitucionalista denomina de Estado de Direito.

Nota 05 Bonavides chega a afirmar que (2014, p. 293) “até mesmo a imaginação se perturba em supor o tumulto que seria congregar em praça pública toda a massa do eleitorado, todo o corpo de cidadãos, para fazer as leis, para administrar”.

Nota 06 Explica Bobbio (2009, p. 56) “A expressão “democracia representativa” significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade”.

Nota 07 Stuart Mill expressamente reconhece o governo representativo (2006, p. 66) “como tipo ideal da forma mais perfeita de governo, para o qual, em consequência, qualquer parte da humanidade melhor se adapta em proporção ao seu grau de aprimoramento geral. Quanto menor for a condição de desenvolvimento de um povo, esta forma de governo será, falando em termos gerais, menos apropriada para eles”.

Nota 08 Assinala Loewenstein (1982, p. 340) “Siempre que el electorado estuvo constituído tan solo por las clases sociales altas de una sociedad relativamente homogénea, y los diferentes partidos no eran más que diferentes ramas de las mismas clases sociales, la técnica de las mayorías simples funcionó generalmente de forma satisfactoria. Con el advenimiento de la democracia de masas, este sistema se reveló manifiestamente injusto: el ganador lo recibe todo, y el perdedor nada. Las minorias salían perjudicadas de tal manera que cabia hablar de privación del derecho de voto. El remedio fue buscado en la representación proporcional”.

Nota 09 Afirma Victor Nunes Leal (1956, p. 48) “A lógica do regime representativo é a extensão do sufrágio. As massas, cada vez mais politizadas, reivindicam esse direito, que tem de ser atendido. A evolução histórica é nesse sentido”.

Nota 10 Barbosa Lima Sobrinho, por ocasião de um debate realizado em 1955, nas dependências do Instituto de Direito Público e Ciência Política, criticava essa insistente defesa da representação minoritária, afirmando, com base em Assis Brasil, que (1956, p. 03) “o sistema representativo não limita seu interesse à presença das diversas correntes de opinião, mas inclui, também, a obtenção de maiorias constituídas, de modo a que seja possível a tarefa dos governos. Mas essa tese não corresponde aos interesses dos partidos, que acabam sempre levando a melhor, no objetivo de uma proporcionalidade cada vez mais rigorosa e que vale, sempre, por uma extrema fragmentação das forças políticas e, em consequência, acarreta o enfraquecimento dos governos”.

Nota 11 Aduz Bonavides (2014, p. 269) “Sendo por sua natureza, como se vê, sistema aberto e flexível, ele favorece, e até certo ponto estimula, a fundação de novos partidos, acentuando desse modo o pluralismo político da democracia partidária. Torna por conseguinte a vida política mais dinâmica e abre à circulação das ideias e das opiniões novos condutos que impedem uma rápida e eventual esclerose do sistema partidário, tal como acontece onde se adota o sistema eleitoral majoritário, determinante da rigidez bipartidária”.

Nota 12 Nesse sentido, percuciente a intervenção de Barbosa Lima Sobrinho (1956, p. 50) “A fragmentação exagerada das forças políticas trás consequências nocivas quanto à constituição do Governo”, e mais adiante pontua o jurista pernambucano (1956, p. 73) “É um engano supor que o regime eleitoral se destina apenas a registrar as diversas correntes de opinião; tende, também, a organizar um governo capaz de atender aos encargos que lhe correspondem. Toda vez que se exagera a preocupação da representação exata das correntes de opinião, enfraquece-se o governo e dificulta-se sua tarefa administrativa”.

Nota 13 Para Pettit, as instituições eleitorais são peça central de qualquer sistema democrático. “E quando operam bem, as instituições necessárias à existência e ao funcionamento de uma legislatura eleita devem garantir que a sociedade seja marcada pela liberdade de expressão, de associação e de ir e vir, e de questionar os eleitores sobre políticas públicas” (2012, p. 207) (tradução livre).

Nota 14 Esclarece Pettit (2012, p. 208): “As instituições eleitorais são necessárias na prática para dar influência e controle ao povo. Elas forçam as pessoas a analisarem suas liberdades na ação política, seja como candidatos ou apoiadores, críticos ou ativistas, e assim reforçam o gozo dessas mesmas liberdades. Elas incentivam os partidos políticos a explorar o espaço de possíveis políticas e exigem que cidadãos comuns formem e expressem suas opiniões em resposta. Elas constituem o catalisador que desencadeia e sustenta o processo pelo qual as pessoas esperam obter influência sobre o governo, e, por isso, deve ser igualmente acessível a todos os cidadãos” (tradução livre).

Nota 15 Afirma Silva (1999, p. 76) “no caso dos princípios representativos, que se referem aos objetivos primordiais de cada sistema, podemos dizer que, no caso dos sistemas majoritários, o princípio a ser atendido é a formação de maiorias parlamentares, enquanto o já referido princípio representativo dos sistemas proporcionais é a distribuição dos mandatos da forma mais proporcional possível ao número de votos de cada partido”.

Nota 16 Pelo sistema proporcional personalizado em vigor na Alemanha, os eleitores vão às urnas, no primeiro turno, quando, então, votam apenas na legenda partidária que melhor reflita as suas respectivas posições e linhas de pensamento e, somente no segundo turno, excluídos os partidos que não obtiverem os votos mínimos, os eleitores votam nos candidatos diretamente (NOHLEN, 1981, p. 519-522).

Nota 17 O autor exemplifica uma situação na qual X obteve 45% dos votos; Y, obteve 40%, enquanto Z obteve 15% dos votos. Se o candidato Y tivesse enfrentado apenas o candidato X, Y poderia ser o candidato preferido pela maioria dos eleitores, assim como se enfrentasse apenas Z (2003, p. 118).

Nota 18 Por essa regra, se nenhum candidato obtiver 50% das primeiras preferências, o candidato com o maior número de últimas preferências, em vez do menor número de primeiras preferências, é eliminado primeiro e o processo é realizado até que seja encontrado um vencedor que receba mais de 50% dos votos. Diz-se que essa regra é melhor do que o voto alternativo na escolha do vencedor do Condorcet (2003, p. 118).

Nota 19 O autor cita o exemplo do modelo Líbano, cujos assentos são etnicamente reservados, e para se eleger, o candidato precisa buscar o apoio de mais de um grupo étnico, pois os votos do seu grupo não são suficientes para elegê-lo. Eles devem trocar apoio com candidatos de outros grupos que concorrem em diferentes lugares reservados no mesmo círculo eleitoral (2003, p. 118).

Nota 20 Horowitz afirma (2003, p. 119) “Em alguns países, principalmente nos Estados Unidos, esforços sérios têm sido feitos para aumentar a participação minoritária de legisladores. No contexto das eleições pluralistas, a Lei dos Direitos de Voto foi interpretada como exigindo o redesenho das fronteiras do eleitorado na direção de uma maior homogeneidade, de modo a facilitar a eleição de representantes das minorias onde as minorias constituem mais da metade do eleitorado” (tradução livre).

Nota 21 A minirreforma eleitoral promovida pela Lei n.º 13.165/2015, provocou profundas alterações em relação ao mecanismo da coligação eleitoral, vedando terminantemente que ela ocorra em relação às eleições proporcionais.