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por Leonardo Naciff BezerraNota 01
O presente ensaio busca traçar diretrizes, ainda que gerais, sobre tema tormentoso e não raro, ocorrente na administração pública em geral, incluída a municipal: dispensa de licitação sob o véu argumentativo consistente em (in)existência de situação emergencial ou urgente, acompanhado da (im)possibilidade de punição do agente político respectivo, mais especificamente o prefeito eleito.
É clássica, no mundo civil, a distinção entre haftung e schuld, todavia, tal diferenciação não se aplica na seara pública, principalmente em razão da responsabilidade objetiva (art. 37, §6º, CF/88) e dos basilares postulados da supremacia do interesse público e de sua indisponibilidade. Isso porque, o agente político, na condição de mero gestor, pode ser responsabilizado pelos atos respectivos, notadamente, quando age como executor contratual, dada a impossibilidade jurídica de ser parte/contratante, desacompanhada de responsabilidade correspondente.
A conclusão acima decorre do fato de o gestor público realizar ato que antecede à celebração dos contratos, qual seja, manifestação renunciativa do certame.
Em verdade, os titulares do Poder Executivo Municipal exercem duplo papel na administração: ora como agente político eleito; ora como gestor que pratica atos administrativos em geral, aí incluídos os relacionados a licitações, contratos e autorização de despesas por meio da emissão de empenhos.
No primeiro caso, como todo Poder emana do povo, na eventual ocorrência de vício que se qualifique como ilícito, o representante do município será submetido a julgamento pelo Poder Legislativo, cabendo aos Tribunais de Contas, tão somente, a emissão de parecer prévio em auxilio à Câmara dos Vereadores, nos exatos termos constitucionais (art. 31, CF/88).
Na segunda hipótese, ao realizar atos de gestão, não raro, pratica atos antecedentes à própria concreção do ajuste, v.g, assinatura de nota de empenho, manifestação dispensativa do certame (art. 26, parágrafo único, do Estatuto Licitatório), etc…, o que demonstra prévio conhecimento da (in)devida licitação (des)acertadamente não realizada.
No caso supramencionado, tem-se que o gestor se desveste de sua condição de candidato eleito, passando a qualificar-se como responsável pelos atos que pratica, donde ser irrefutável a possibilidade de ser responsabilizado, constatando-se qualquer vício administrativo passível de apenamento.
Por conter pontos de intersecção com o temário, referencio o Acórdão n.º 46/2006 do Tribunal de Contas da União, relatado pelo i. Ministro Benjamin Zymler, que assim dispõe:
17. Esclarecido esse ponto, cabe expor o entendimento do Tribunal de Contas da União sobre a responsabilização dos agentes políticos. Consoante disposto na Decisão TCU Plenário nº 180/1998, são agentes políticos apenas o Presidente da República, os Governadores e os Prefeitos Municipais (nesse último caso, quando assinam convênios mas não são seus executores diretos). Ressalto que, caso esses agentes políticos pratiquem atos administrativos, eles podem ser responsabilizados pelas consequências desses atos. (grifei)
De igual forma, o Decreto-Lei n.201/67 prevê como crime de responsabilidade a contratação de serviços ou bens sem a devida concorrência, vale dizer, ausente licitação nos casos em que a lei a exige. Veja-se:
Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:
(…)
XI - Adquirir bens, ou realizar serviços e obras, sem concorrência ou coleta de preços, nos casos exigidos em lei;
Excepcionalmente, o certame pode ser dispensado (art. 24, IV, do Estatuto Licitatório), caracterizando tal ato como discricionário, constituindo dever do administrador avaliar sua oportunidade e conveniência, sem nunca descurar da matéria de fundo: indisponibilidade do interesse público.
Todavia, não se afigura juridicamente admissível eventual alegação de situação emergencial, quando a urgência ressai de ausência de planejamento administrativo, o que facilmente se denota, quando de feitura de aditivos e/ou recontratações intempestivas ou extemporâneas. Não se alega urgência decorrente de inabilidade administrativa, pois, pensar contrariamente seria vulnerar princípios introdutórios de direito e moral: a ninguém é dado se beneficiar da própria torpeza.
Justifica-se situação emergencial, apenas e tão somente se demonstrados eventos que espelhem ineditismos, atos episódicos, imprevisíveis, sob pena de desvirtuamento da igualdade. Assim, o mero esgotamento ou findar contratual mostra-se inidôneo a autorizar o enlace direto, continuando a execução dos serviços, à margem da devida concorrência.
Em seara administrativa-pública, não se tolera "emergência fabricada". Nesse sentido, reproduz-se entendimento assim externado:
Note-se que na hipótese de emergência fabricada, ainda que não haja má-fé, os responsáveis respondem administrativa e civilmente pela ilegalidade cometida, inclusive com relação aos possíveis prejuízos acarretados. (TCU Acórdão 300/2004 - Plenário).
Sob tal ordem de ideias, adverte Mariense Escobar que "a situação emergencial ensejadora da dispensa é aquela que resulta do imprevisível, e não da inércia administrativa (…). A situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis, ou seja, que ela não possa, em alguma medida, ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de agir para prevenir a ocorrência de tal situação; exista urgência concreta e efetiva do atendimento à situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou à vida de pessoas; o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente gravoso; a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e eficiente para afastar o risco iminente detectado.(TCU Decisão 0347/1994 Plenário).
A jurisprudência da Corte Federal Contábil harmoniza-se com o aqui consignado:
Falta de planejamento do administrador não é capaz de justificar a contratação emergencial. (Decisão 300/1995 2ª Câmara TCU).
Devem ser adotadas as providências cabíveis para que sejam promovidos os processos licitatórios com a antecedência necessária para a sua conclusão antes do término do contrato vigente, evitando-se a descontinuidade da prestação dos serviços e a realização de dispensa de licitação, fundamentada no art. 24, inciso IV, quando não estiverem absolutamente caracterizados os casos de emergência e calamidade pública estabelecidos no citado dispositivo legal.(Acórdão 260/2002 Plenário)
Efetue planejamento adequado das contratações, de modo a realizar tempestivamente os respectivos procedimentos licitatórios e evitar que a prestação dos serviços ou o fornecimento de bens ocorram sem amparo contratual, contrariando o art. 60, parágrafo único, da Lei nº 8.666/1993, ou que seja firmado ajuste emergencial, em desacordo com as hipóteses contempladas no art. 24, inciso IV, da citada lei. (Acórdão 890/2007 Plenário)
A contratação direta com fundamento em situação emergencial deve decorrer de evento incerto e imprevisível, e não da falta de planejamento ou desídia administrativa do gestor. (Acórdão 3267/2007 Primeira Câmara Sumário)
Observe que a contratação com base no art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93, aplica-se aos casos em que a situação adversa, a título de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis. Ou seja, que ela não possa, em alguma medida, ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de agir para prevenir a ocorrência de tal situação. (Acórdão 3754/2009 Primeira Câmara)
Pelo exposto, observa-se que a regra no ordenamento jurídico brasileiro é a concorrência, realização de certame com vistas a prestigiar a igualdade, buscar o menor preço (quando esse for tipo eleito), proteger o bem público, tutelando-se o interesse maior da administração, não só o primário (indisponibilidade), como também o secundário (art. 37, XXI, CF/88).
Exceções interpretam-se restritivamente, e, justamente por isso, contratações diretas devem afigurar-se como episódicas, sob pena de responsabilização civil (art. 37, §5º, CF/88), administrativa (art. 37, §4º, CF/88 c/c Lei n. 8429/92 c/c Lei 4.717/1965) e penal (arts. 312, 317 e segs do CP), isso a alcançar o agente ímprobo, o particular beneficiário, bem como todos que de alguma forma contribuíram para o desvirtuamento do desejo constitucional. Em arremate: não se fabrica emergência.
Nota 01 Juiz de Direito do TJ/GO.