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por José Antonio Dias ToffoliNota 01
Desde que a atual Constituição foi promulgada, em 1988, o Brasil vive seu mais longo período de estabilidade democrática. Em outubro de 2014, pela sétima vez desde a redemocratização do país, o povo brasileiro, na maior eleição de sua história, dirigiu-se às urnas, em um ambiente de muita tranquilidade, para escolher o futuro da nação. Foram eleitos o Presidente da República, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal e seus respectivos vices, bem como uma parcela dos Senadores da República e a totalidade dos representantes do povo na Câmara dos Deputados e nas Assembleias Legislativas dos Estados e do Distrito Federal.
Atualmente, o percentual de votantes é de 71% da população brasileira. Com mais de 142,8 milhões de eleitores, o Brasil é a quarta maior democracia do mundo em número de eleitores, sendo superado apenas pela Índia, pelos Estados Unidos e pela Indonésia.
À Justiça Eleitoral, incumbe, em nosso país, organizar, supervisionar e julgar o processo eleitoral e, para tanto, ela desenvolve atividades de cunho administrativo, normativo e jurisdicional. Sua atuação no campo administrativo e organizacional vai desde a organização do cadastro dos eleitores e o registro dos partidos políticos até a proclamação do resultado das eleições e a diplomação dos eleitos. Compete, ainda, à Justiça Eleitoral editar resoluções regulamentadoras das normas gerais da legislação eleitoral vigente, bem como responder a consultas formuladas sobre matéria eleitoral.
Discorreremos, neste artigo, sobre as realizações e as inovações normativas e administrativas no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concernentes às eleições gerais de 2014, as quais bem demonstram a vitória da democracia e o papel fundamental da Justiça Eleitoral na realização das eleições no Brasil.
Nos termos do disposto no art. 23, inciso IX, do Código Eleitoral, c/c o art. 105, caput, da Lei nº 9.504/97, o TSE, até o dia 5 de março do ano da eleição, deve expedir as instruções necessárias à disciplina do pleito eleitoral, exercendo, assim, adequadamente, o referido poder regulamentar que lhe é conferido.
Pela Portaria nº 129, de 12/3/2012, a então Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministra Cármen Lúcia, honrou-me com a designação para atuar como relator das instruções do pleito de 2014. Para auxiliar os trabalhos pertinentes à edição das resoluções, foi constituída comissão formada por servidores do Tribunal Superior Eleitoral, sob a supervisão do Assessor-Chefe da Assessoria Especial da Presidência, bem como realizadas diversas audiências públicas para a apresentação de sugestões para o aperfeiçoamento das normas a serem editadas.
Tais resoluções são editadas a cada eleição e, portanto, merecem destaque as principais alterações e inovações constantes das instruções editadas para as eleições de 2014.
Assim, por exemplo, no que tange à Resolução nº 23.396, que tem por escopo disciplinar a apuração de crimes eleitorais, foram feitas alterações pontuais em relação à Resolução-TSE nº 23.363/2011, norma outrora vigente sobre a matéria, dentre as quais destaco:
Já no que concerne à Resolução nº 23.399, que dispõe sobre os atos preparatórios para as eleições de 2014, conforme ressaltei quando de sua apreciação pelo Plenário do TSE, houve a "inclusão, neste diploma normativo, de alguns temas que nos pleitos anteriores foram disciplinados em outras resoluções, tais como diretrizes sobre voto em trânsito, voto no exterior e voto dos presos provisórios e de internados por ato infracional, buscando concentrar em uma única instrução as disciplinas correlatas".
Destaquei, naquela oportunidade, as principais inovações representadas pela edição desse diploma normativo, quais sejam:
Ressalto, ainda, para destacar a importância e a utilidade das audiências públicas que antecederam a elaboração das resoluções para as eleições de 2014, que, quando da realização dos atos preparatórios prévios à edição da resolução ora em análise, diversas sugestões então recebidas acabaram por ser acolhidas no capítulo referente à preparação das urnas, dentre as quais merecem referência as seguintes:
A Resolução nº 23.404, voltada às propagandas eleitorais e às condutas ilícitas nas eleições de 2014, contém algumas novidades, dentre as quais se destacam:
Por fim, a Resolução nº 23.406, que dispõe sobre a arrecadação e os gastos de recursos por partidos políticos, candidatos e comitês financeiros e, ainda, sobre a prestação de contas, nas eleições de 2014, trouxe significativas inovações.
Dentre elas, destaco que, consoante previsto no caput do art. 1º, facultou-se a criação de comitês financeiros para os partidos que optarem por arrecadar e aplicar recursos diretamente, como medida tendente a reduzir a burocracia e facilitar a prestação de contas, indo ao encontro dos anseios dos dirigentes partidários.
Destacam-se, ainda, os importantes reforços nos mecanismos de controle, tais como a necessidade de utilização dos recibos eleitorais durante a campanha (art. 11), a abertura de conta bancária específica para os recursos do Fundo Partidário recebidos por candidatos e comitês financeiros (art. 13), possibilidade de início do exame das contas parciais logo após sua entrega (art. 37) e exigência de os partidos informarem as doações para os candidatos, indicando os doadores originários, evitando assim a chamada doação oculta, quando empresas doam para candidatos por meio dos partidos (art. 15).
No que concerne às contas parciais, foi introduzida, ademais, norma que previu a divulgação dos nomes dos doadores e dos fornecedores já por ocasião da entrega das parciais (§ 3º do art. 26)Nota 02, o que possibilita o controle imediato pelos cidadãos, pelos candidatos e pelos partidos políticos.
Também foram estabelecidas regras concernentes à utilização de recursos próprios dos candidatos, os quais restaram limitados ao equivalente à metade do patrimônio do candidato no exercício anterior ao do pleito, com observância da disciplina estatuída no Código Civil sobre o tema (parágrafo único do art. 19). Destaque-se, ainda, que o conceito de fontes vedadas foi mais amplamente detalhado, restringindo-se taxativamente qualquer hipótese de recebimento de recursos financeiros de origem estrangeira, em observância ao inciso II do art. 17 da Constituição Federal (art. 28). Esclareceu-se, de igual modo, a vedação de doações e contribuições procedentes de cartórios de serviços notariais e de registros (art. 24, XIII).
Adequando uma hipótese concreta à jurisprudência já cristalizada no TSE, estabeleceu-se expressamente que a quitação das multas eleitorais não pode ser realizada com recursos do Fundo Partidário (§ 1º do art. 31). Entendeu-se, ainda, ser relevante ressalvar, dos limites de doação estabelecidos pelo art. 23 da Lei nº 9.504/97, o trabalho realizado por militantes, razão pela qual se menciona, no inciso I do art. 25, a prestação de serviços próprios. Quanto à observância dos limites de doação, estabeleceu-se prazo para encaminhamento das informações referentes às doações pelo Tribunal Superior Eleitoral à Receita Federal do Brasil e, se por ela apurado eventual excesso, fará a devida comunicação ao órgão ministerial, resguardado o sigilo fiscal (art. 25, § 4º).
Considerando-se o caráter jurisdicional de que ora se revestem as prestações de contas, foi inserida a obrigação de constituição de advogado, acrescentando-se, ainda que, para propiciar uma melhor qualidade quanto a essas contas, exigiu-se sua assinatura também por profissional de contabilidade (§ 4º do art. 33).
Como se vê, todas essas inovações normativas foram realizadas com o intuito de se aprimorarem os procedimentos de fiscalização e de controle, tornando-os mais ágeis, transparentes e eficazes, além de concomitantes à realização do pleito, e não mais posteriores, como ocorria anteriormente.
Conforme já salientado, a Justiça Eleitoral é o órgão da nação brasileira responsável pela organização e pela administração de todo o processo eleitoral (alistamento eleitoral, votação, apuração dos votos, diplomação dos eleitos, dentre outros).
A maior inovação no campo administrativo e organizacional das eleições de 2014, sem dúvida, consistiu na descentralização dos trabalhos de apoio às eleições (técnicos de urnas), que, até o pleito anterior, eram prestados, de forma centralizada, por uma única empresa, contratada pelo TSE para atuar em todo o país. De início, essa sistemática seria mantida para as eleições de 2014 e, assim, um procedimento licitatório foi aberto, com a escolha de uma proposta no valor aproximado de R$ 120.000.000,00 (cento e vinte milhões de reais). Porém, por razões de ordem técnica, esse certame foi anulado e, em seguida, outro pregão foi realizado, vencendo uma proposta no montante de R$ 141.000.000,00 (cento e quarenta de um milhões de reais).
Em razão da disparidade entre esses valores foi aberto prazo para renegociação das cifras, mas, mesmo assim, o menor valor obtido ainda foi sensivelmente superior àquele constante da proposta vencedora do primeiro pregão. Por isso, por decisão do Presidente do TSE e, após consulta aos Tribunais Regionais Eleitorais, decidiu-se pela descentralização dessa prestação de serviços. E assim foi feito, cancelando-se, em definitivo, o aludido pregão e deliberando cada regional pela contratação de empresa especializada para auxiliar na realização das eleições, o que gerou um custo global aproximado de pouco mais R$ 83.000.000,00 (oitenta e três milhões de reais), substancialmente inferior, portanto, ao valor a que se chegou no segundo pregão realizado pelo TSE (R$ 141.000.000,00 (cento e quarenta e um milhões de reais)).
Constata-se, assim, de forma cristalina, o acerto dessa medida, que representou enorme economia de recursos e permitiu que cada tribunal regional eleitoral fizesse frente a suas necessidades de apoio técnico, de forma descentralizada, tratando diretamente com a empresa vencedora da licitação local, o que aumentou, em muito, a eficiência dos serviços prestados.
Outro ponto importante de se destacar é que a Justiça Eleitoral vem buscando, cada vez mais, aprimorar os níveis de segurança e eficiência do processo eleitoral. Com a urna eletrônica, que completou 18 (dezoito) anos nas eleições de 2014, mais do que agilidade na contagem e na divulgação dos votos, garantiu-se a certeza de que o voto dado é o voto computado.
Além disso, é importante garantir que cada eleitor expresse uma única vez sua vontade nas urnas. Para atingir esse objetivo, nas eleições de 2014, contamos com o avanço significativo da identificação biométrica dos eleitores, a qual garante uma maior segurança quanto à correta identificação dos cidadãos que comparecem às urnas, tornando impossível que um eleitor vote no lugar de outro.
Nesse contexto, alguns números merecem destaque.
Das 434.340 urnas eletrônicas utilizadas no primeiro turno das eleições de 2014, somente 5.275 foram substituídas, o que equivale a 1,21%. Apenas oito seções eleitorais em todo o país utilizaram votação manual. No segundo turno, apenas 0,75% do total das urnas disponibilizadas para o pleito tiveram que ser substituídas. Quanto ao sistema de identificação biométrica, 21.677.955 eleitores estiveram aptos para votar pelo sistema biométrico em 764 municípios. Destes, 91,5% foram reconhecidos por meio das digitais. Dentro de poucos anos, essa moderna inovação alcançará a totalidade dos eleitores brasileiros.
Em um universo de 142.822.046 eleitores, 115.122.883 deles efetivamente compareceram às urnas para votar no primeiro turno das eleições e 112.683.358 o fizeram no segundo turno, nas 451.501 seções eleitorais espalhadas pelo país e pelo exterior.
Não se pode deixar de considerar que, para desempenhar esse trabalho eleitoral, em cada uma das mais de 3.033 zonas eleitorais em que dividido o território nacional, contou-se com o auxílio de 2.432.988 mesários, sendo que mais da metade deles foram voluntários.
A perfeita coordenação do trabalho desse verdadeiro exército, realizada pelos 27 Tribunais Regionais Eleitorais e capitaneada pelo Tribunal Superior Eleitoral, permitiu que, apesar de o número total de candidatos nas eleições de 2014 ter ultrapassado a cifra de 22 mil, o resultado da apuração fosse prontamente conhecido, em poucas horas, tanto no primeiro como no segundo turno das eleições.
Nas eleições de 2014, a contagem dos votos do primeiro turno da eleição presidencial foi a mais rápida da história da Justiça Eleitoral, com a divulgação do resultado matemático das eleições presidenciais (91% dos votos válidos apurados), apenas 56 minutos após o encerramento da votação. No segundo turno, 1 hora e 27 minutos após o fim da votação, estávamos prontos para informar à população brasileira que, com 98% dos votos apurados, tinham sido alcançados resultados matematicamente irreversíveis: Dilma Rousseff tinha até então obtido 51,45% dos votos válidos, enquanto Aécio Neves tinha 48,55%.
Apesar de extremamente disputada, foi o povo brasileiro o grande protagonista das eleições de 2014, comparecendo tranquilamente às urnas e demonstrando a maturidade da democracia no Brasil.
Passadas as eleições, a Justiça Eleitoral permanece com os olhos no futuro e a serviço do desenvolvimento e do fortalecimento da democracia.
A segurança do voto e a legitimidade da vontade popular sempre foram preocupações centrais da Justiça Eleitoral. A urna eletrônica e a identificação biométrica são os maiores exemplos disso. Mas é preciso ir além nesse avançar tecnológico da Justiça Eleitoral. É imprescindível que o Estado brasileiro também tenha condições de garantir segurança à identificação do cidadão brasileiro para além do processo eleitoral.
Exatamente por isso, está em fase de estudo o projeto do Registro Civil Nacional (RCN), o qual tem o objetivo de utilizar a identificação biométrica dos eleitores para a criação de um registo nacional dos cidadãos, a ser gerido pela Justiça Eleitoral. O RCN proporcionará - a partir da identificação, perante a Justiça Eleitoral, de todos os cidadãos brasileiros, desde seu nascimento - a interação entre esse banco de dados e os demais bancos de dados estatais, de modo que esses também tenham a garantia da segura identificação dos cidadãos.
As eleições de 2014 também evidenciaram a urgência no avanço de certos temas da reforma política do país. Nos próximos anos, a democracia brasileira e seu processo eleitoral enfrentarão dois principais desafios.
Em primeiro lugar, é necessário e fundamental discutir em profundidade o papel dos partidos políticos, uma vez que eles são os mediadores exclusivos de acesso ao poder. Tal debate deve incluir a avaliação do próprio sistema eleitoral. Em decorrência da facilidade para a criação de partidos políticos, há hoje no país um total de 32 agremiações. Nas eleições gerais de 2014, 28 partidos alcançaram assentos na Câmara dos Deputados, o que pode levar a uma séria fragmentação do sistema partidário e colocar em risco a governabilidade do país.
Em segundo lugar, também tenho chamado a atenção para a necessidade de se ampliar e acelerar o debate sobre o financiamento da democracia brasileira. A campanha eleitoral de 2014 para Presidente da República foi a mais cara de nossa história. Foram gastos por todas as candidaturas mais de 648 milhões de reais. Nas campanhas dos candidatos que concorreram ao segundo turno, Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB), foram gastos, respectivamente, 350 e 223 milhões de reais. As contribuições de pessoas jurídicas a todos os candidatos somaram mais de 579 milhões de reais, o que corresponde a mais de 90% do total dos recursos gastos.
A presença massiva das empresas privadas acaba por apequenar a participação do cidadão na disputa. As contribuições de pessoas físicas corresponderam a apenas 2% dos recursos utilizados, o que contradiz a essência da democracia, uma vez que o voto e a cidadania não são exercidos pelas corporações, mas pelos próprios cidadãos. É fundamental que a nossa legislação estabeleça limites legais para as despesas com campanhas eleitorais e limites uniformes para as doações.
Enfim, há sempre o que refletir e avançar no esforço permanente de se aprimorar o processo democrático. A Justiça Eleitoral demonstrou, mais uma vez, nas eleições gerais de 2014, que está plenamente à altura de seu papel de guardiã da democracia brasileira, encontrando-se inteiramente capacitada para zelar pela realização de eleições periódicas, livres, seguras, equânimes e que preservem e concretizem a genuína vontade popular em todo o território nacional.
Brasília, novembro de 2014.
Nota 01 Presidente do Tribunal Superior Eleitoral de 13/05/2014 a 11/05/2016.
Nota 02 Ressalte-se, por oportuno, que tal procedimento já havia sido adotado nas eleições de 2012, a partir de decisão proferida pela Ministra Cármen Lúcia, sob o fundamento de que a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/11) revogou o disposto no art. 28, § 4º, da Lei nº 9.504/97, a qual previa ser possível a divulgação desses dados somente na prestação de contas final.