Artigos de Memória Institucional

 

O Judiciário Goiano entre a Primeira República e a Construção de Goiânia

por Nasr Fayad Chaul01

 

No resgate que fez o historiador Jales Guedes das andanças do juiz Virgílio Martins de Mello Franco por Minas e Goiás no final do século XIX, publicado na Imprensa Nacional em , demonstra que Virgílio chegou à Provincia de Goyaz em para assumir a comarca de Palma (hoje Tocantins), onde ficou apenas um mês, retornando em , “após ser removido para a comarca do Rio Maranhão, com sede na cidade de Pirenópolis, após sua retirada em definitivo no ano seguinte”. (Guedes, Jales Coelho Mendonça. Jornal Opção. )

Para Virgílio, Goiás era quase um deserto escondido no coração do Império. Lamentava o trajeto que iria percorrer pelo vão do Paranã e a tristeza em deixar a civilização. A viagem levava cerca de dois meses, sujeita às intempéries de cada estação. Segundo o juiz, Goiás possuía 17 unidades judiciárias para uma população de 160 pessoas. Virgílio somava suas ideias aos viajantes europeus que passaram por Goiás no século XIX, a vários intérpretes e estudiosos que viam, equivocadamente, um processo de decadência na região no pós aurífero.

Reclamava que “as Assembleias Legislativas provinciais votavam o nascimento de uma nova comarca e o Governo Central votava a viabilidade ou não da sua existência, tomando por base a aquiescência do Presidente da Província, representante do Imperador. Em caso afirmativo competia ao Ministro da Justiça nomear um Magistrado. A política e suas conveniências imperavam. Jales nos lembra que a criação da comarca do Rio Araguaia nasceu e morreu sem ter nenhum juiz de direito.” (Idem. Ibidem) Destaca ainda o interesse dos suplentes de juiz que acabavam ocupando os postos pelo desinteresse dos bacharéis. Os desembargadores que estavam em final de carreira e idade avançada resistiam ao máximo dirigirem-se para Goiás e recorriam aos juízes de direito das comarcas mais próximas.

Temos que destacar a Primeira República como a época política de domínio dos bacharéis na vida política nacional. Em meados da década de , até mais propriamente, na chamada Primeira República, as relações entre o poder executivo e o judiciário eram tranquilas. A partir de então começaram os problemas, chegando até a um pedido de intervenção do STJ goiano ao poder central que acabou não acontecendo na prática, mas que deflagou crises e mais crises entre os dois poderes.

Fruto de cizânia, em a Lei Estadual 892 de julho, elevou a composição de 5 para 9 os membros do STJ, destituindo Emílio Póvoa da Presidência e nomeando Airosa Alves de Castro em seu lugar. Airosa retira, assim que assume, o pedido de intervenção federal.

Para alguns autores essa crise é o preâmbulo para rearticular a oposição em Goiás estimulada pelos antigos bulhonistas e os dissidentes do Partido Democrata. Reavivam a agremiação do Partido Republicano. No cerne de tudo, um discurso do juiz de direito Mário Caiado, primo de Totó e ferrenho opositor ao mesmo, acirraria ainda mais os ânimos oposicionistas.

Com a ascensão do movimento de , inicialmente foi formado um governo provisório composto do Juiz de Direito Mário Caiado, do Desembargador Emílio Póvoa e do médico Pedro Ludovico Teixeira. Dois representantes do Poder Judiciário, onde os bacharéis foram representantes da vida política nacional na Primeira República e um médico, que seria uma das profissões mais presentes na política nos anos 30 em diante.

A representação da modernidade ganha força em Goiás nos anos 30, com a ascensão econômica das regiões sul e sudoeste do Estado, conduzindo ao poder político Pedro Ludovico Teixeira, médico, político e intelectual, um lídimo intérprete dos interesses desenvolvimentistas dos grupos políticos que pretendiam transformar Goiás em um polo de desenvolvimento e progresso. A modernidade para os arautos de 30 consistia no progresso do Estado, por meio do desenvolvimento da economia, da política, da sociedade e da cultura regionais.

É importante destacar que a representação da modernidade se edificava em oposição ao passado que encarnava a decadência e o atraso de Goiás ao longo de sua história. Os anos 30 se apresentavam como a antítese do que havia sido Goiás até então. Em nome da modernidade não só se combatia a Primeira República com suas oligarquias retrógradas, como também se propunha uma nova era político-social e econômica para o Estado, uma época de prosperidade e progresso.

Pedro Ludovico Teixeira foi nomeado interventor federal por Vargas, em novembro de , em uma disputa que contava com fortes nomes para o cargo, como os de Mário Caiado e Domingos Neto Velasco. O nome de Ludovico ficou na ordem do dia devido a sua combatividade à ordem anterior e às afinidades que seu concunhado, o médico mineiro Diógenes Magalhães, mantinha com Vargas. Pedro Ludovico formou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em . Retornando a Goiás, começou a exercer a medicina aos 25 anos, iniciando seu trabalho na cidade de Bela Vista. Posteriormente, escolheu a cidade de Rio Verde para clinicar, atendendo também as cidades vizinhas. Os percalços de sua profissão eram os mesmos que toda a categoria sofria por Goiás afora: ter de se deslocar para fazendas e arraiais distantes, em canoas, a cavalo ou até mesmo a pé, para fazer atendimentos precários.

Desconhecido regional e nacionalmente, Pedro Ludovico resgata uma velha ideia: a mudança da capital como instrumento político de inúmeras facetas. Por fim, veio a nova capital, a capital do sertão. Na proposta de mudança da capital, os argumentos para essa transferência foram sobretudo embasados no saber médico. Pedro passa então a tratar a Cidade de Goiás, sua terra natal e berço das oligarquias em queda, como a uma doente enferma na UTI do capitalismo brasileiro.

Ao utilizar o saber médico como forma de controle político do Estado, Pedro Ludovico incorporou a problemática da higiene pública que será o instrumento privilegiado pelos médicos na tática utilizada para dar à medicina estatuto político próprio, o que significa seu aparecimento como um poder capaz de tomar parte efetiva nas medidas de organização, controle e regularização da vida social. Goiânia matrona, bela dona, sessentona, capricho do sertão, fundição de concreto e sonho, filha dileta dos anos trinta, amante de Pedro, de pedra, fundamental para todos nós. A inserção da região no projeto da nação na Era Vargas.

Couto Magalhães pensou noutro local, noutra capital, mas não pensou Goiânia, Rodolfo Gustavo da Paixão, queria mudar de Goiás a capital, mas não imaginou Goiânia. Pedro pensou Goiânia, articulou Goiânia, respirou esse ar de umidade baixa, semeou sonhos na solidão do cerrado. Pedro somou forças com quase quatro mil obreiros anônimos, com dois arquitetos geniais que moldaram modernas construções no meio do quase nada, com a engenharia discreta dos Coimbra Bueno.

Capital das necessidades de desenvolvimento interno, trampolim para Brasília, glória do sul e sudoeste do Estado, marcha obrigatória da marcha para oeste, Goiânia não respondeu aos gritos alarmados dos antimudancistas em /. Pedro usava seu saber médico para tratar Goiás, a velha capital, não tratar para curar, mas para sepultar, filho que nega a própria terra em nome do “novo tempo”. A Velha Capital, representação de nosso espelho imemorial de ouros coloniais, não resistiu aos apelos da ciência médica. Colocada na UTI do capitalismo de seu tempo estava condenada a perder seu posto de primeira-dama de nosso passado administrativo. Goiânia não projetava gastos e sim calculava investimentos. Filha capitalista do sertão, modernidade no planalto central das ambições de desenvolvimento do Estado, era pouco ambiciosa em seu crescimento. Projetada para pouco mais de 50.000 habitantes não pensou em ter milhões de pessoas em sua volta, multiplicando casas, vilas, prédios e pressões urbanas. Aos 88 anos já é avó de seus problemas, sem controle de seus meninos de rua, sem dar palmatória desejada nas mãos de sua violência aterradora, sem resolver suas crises de menopausa de toda ordem. Apenas senhora de suas lições pelos caminhos de Goiás. Uma capital planejada em art d′eco cravada no interior goiano, Campinas.

Goiânia se prestava à formação de imagens de toda ordem. Era sempre representada pelo moderno devido a sua arquitetura arrojada, seu planejamento urbano, seu traçado contemporâneo.

A inauguração oficial ocorreu em julho de . A história dessa cidade septuagenária, capital plantada no interior, ao mesmo tempo campo e cidade, vem a ser um exemplo daquilo que Marco Polo ensinou a Kublai Kan nas Cidades invisíveis, de Italo Calvino: a uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas. Nesse sentido, Goiânia nos deu respostas históricas, através de sua estruturação e do processo histórico que envolveu sua construção e elevação a capital do Estado.

Quanto ao tema central aqui discutido, o judiciário goiano, Pedro Ludovico deu a ele especial atenção. Em , envia Mensagem à Assembleia Legislativa informando o provimento do cargo de juízes em diversas comarcas, incluindo Goiânia, a cargo de Heitor de Moraes Fleury.

No Relatório de Pedro Ludovico a Vargas -, ressalta que o ensino jurídico que era determinado, em todas as suas instâncias, pelo poder dominante da política local antes de , mudou completamente com o restauro da Faculdade de Direito que deixa de matricular por indicações políticas e passa a ser por concurso legítimo. Pede, assim, sua Federalização. Todo um caráter de moderno e legítimo perpassa os Relatórios do Interventor. Destaca ainda a revogação da composição do STJ, voltando à sua originalidade de 5 membros e a elevação para primeira e terceira entrância para as comarcas do Norte.

Já em seu Relatório a Vargas de -, Pedro Ludovico abre um item inteiro sobre o Judiciário afirmando que sem este poder bem aparelhado e cercado de respeito e consideração, não é possível a execução de um Estado e de suas funções. Destaca todo o apoio ao Judiciário, a renovação e sua autonomia e enfatiza a criação e o trabalho do Tribunal de Apelação com seus 7 membros, 30 juízes em 29 comarcas, sendo 5 juízes substitutos vitalícios e 23 juízes municipais temporários.

Assim, ao lado de uma nova Capital, um novo Judiciário se efetivava no contexto do chamado novo tempo. Um novo bandeirantismo necessitava de um respaldo jurídico que o defendesse, justificasse e lhe desse um caráter de uma época de leis claras, regras definidas, respeitadas e aceitas popularmente.

01 Nasr Fayad Chaul, professor Titular da Faculdade de História da UFG (aposentado), Doutor em História Social pela USP, Gestor Cultural e ocupante da cadeira n. 03 da Academia Goiana de Letras-AGL. Autor de entre outros livros: A Construção de Goiânia e a Transferência da Capital e Caminhos de Goiás: da Construção da Decadência aos Limites da Modernidade.