Artigos de Memória Institucional

 

Dário Délio Cardoso: um Jurista para a História

por Itaney Campos01

 

 

Foto de Dário Délio Cardoso, arquivo do Tribunal Regional Eleitoral

O Poder Judiciário brasileiro sempre descurou de sua memória. Palco de narrativas e embates históricos, de conflitos políticos, de paixões avassaladoras, de julgamentos de crimes horripilantes, não preserva os registros desses conflitos, e quando o faz, raramente procede adequadamente. Há certo desapreço pela memória, pelos cuidados com a documentação que instruiu os processos já findos, com o mobiliário de época, substituído; com o acervo iconográfico. Nunca houve, a rigor, essa cultura de valorização da história, no âmbito desse Poder, tanto é que, ainda hoje, se testemunha a deterioração de bens, objetos e documentos de inestimável valor histórico, sobretudo nas comarcas do interior. Pode-se dizer, literalmente, que documentos preciosos estão servindo de comida às traças, ratos e baratas nos arquivos das cidades interioranas, sobretudo nas mais antigas do Estado. E isso vem ocorrendo desde os primórdios, quando se criou a capitania de Goiás.

Há pouco testemunhei a exposição ao tempo, ao sol, aos ventos e à chuva dos ossos presumivelmente do desembargador e poeta Félix de Bulhões, no seu cemitério, na cidade de Goiás. Uma amiga, visitando um cemitério, na mesma cidade, viu um crânio exposto, e o recolheu ao jazigo, para o escândalo de quem a acompanhava. Éessa a situação. Insustentável. Nesse deserto de providências de cultivo da memória, um oásis floresceu quando o Tribunal de Goiás, na gestão do Desembargador Ney Teles de Paula, criou o Centro de Memória e Cultura do Poder Judiciário de Goiás, no histórico prédio do Fórum Emílio F. Póvoa, na cidade de Goiás, atribuindo-lhe o nome do escritor Desembargador Maximiano da Matta Teixeira, que dava nome ao antigo Museu do Judiciário.

Nesse compasso, em nota de regozijo, ressalte-se que, já no ano de , o egrégio Tribunal Regional Eleitoral deste Estado criou o Centro Histórico, instalado posteriormente, no ano de , no primeiro andar do tradicional prédio daquela Corte, na gestão do Desembargador Ney Teles de Paula. Hodiernamente, na linha da moderna tecnologia, o presidente desse Tribunal, Desembargador Leandro Crispim, inaugurou o Memorial Virtual, com rico acervo, passível de visualização por qualquer pessoa, de qualquer ponto do país e do mundo. é a ferramenta da informática posta a serviço da história. Acendeu-se uma luz no panorama lúgubre em que se enterrava a memória do Poder.

Nessa desolação cultural, veio, em muitíssima boa hora, a recomendação, por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no sentido de se implementarem medidas de cultivo, valorização e preservação da memória do Judiciário nacional, instituindo o CNJ, ademais, o dia da Memória do Poder, coincidente com o dia , data em que se celebra a instalação, no Rio de Janeiro, no ano de , da Casa da Suplicação do Brasil. Já tardava, no âmbito do Poder Judiciário, uma normativa que orientasse esse Poder a prestigiar a sua experiência histórica e a cultivar a sua memória, parte indissociável da cultura brasileira.

Afinal, como já se disse, quem não conhece o seu passado está fadado a repetir os seus erros, valendo lembrar, com Marc Bloch, que a compreensão do presente deriva do conhecimento do passado, certo também que a história deve permitir a compreensão do passado através do presente. Nesse afã, o resgate das realizações dos protagonistas da instituição, ao longo do tempo, é uma das ações de preservação da memória. Nesse desiderato, trago a lume, neste artigo, a figura e trajetória de uma das personagens de relevo no cenário jurídico e cultural goiano no período de a , vale dizer, do movimento da mudança da capital do Estado de Goiás para Goiânia aos anos iniciais do regime autoritário, inaugurado, a rigor, em , pelo Ato Institucional nº 5, de . Estou a referir-me à figura do intelectual e jurista Dário Délio Cardoso, dublê de professor universitário e político, que, por mais de oito anos, presidiu o Tribunal de Justiça de Goiás e também foi um dos próceres da Justiça Eleitoral goiana, promovendo a instalação, em Goiânia, do Tribunal Regional Eleitoral. O jurista é natural da cidade de Corumbá de Goiás, onde nasceu em , nos albores da República. Nessa mesma vila, de origem minerífera, nascera duas décadas antes, o poeta e comerciante Érico Curado, pai do notável escritor Bernardo Élis, único goiano a integrar a Academia Brasileira de Letras, cuja obra ficcional obteve repercussão nacional.

Corumbá, que preservou seu perfil arquitetônico colonial, foi também o berço do novelista J.J.Veiga e do jornalista e poeta Benedito Odilon Rocha, genitor dos conceituados acadêmico Hélio Rocha e jornalista Reinaldo Rocha, de saudosa memória. Em Pirenópolis, a velha Meia Ponte, fez o menino Dário os estudos primários, sob a batuta do professor e maestro Joaquim Propício de Pina. Prosseguiu os estudos na cidade de Goiás, antiga Vila Boa, capital do Estado, frequentando o vetusto Liceu de Goiás. Na cidade de Belo Horizonte realizou os estudos de nível superior, bacharelando-se em Ciências jurídicas e sociais, no ano de .

Regressando ao Estado natal, dedicou-se ao magistério, ofício de que nunca desertou ao longo da vida, a par do exercício da advocacia. Nos anos de e , foi designado professor das cadeiras de Português da Escola Normal do Estado e História da Civilização, do Liceu de Goiás. Foi então nomeado professor (Direito Público e Constitucional) e Diretor, em , da Faculdade de Direito do Estado. Convocado a assumir a Procuradoria-Geral do Estado, em , quando já se transferia a capital para a cidade de Goiânia, ainda em construção, aceitou a incumbência, até que veio a ser escolhido e nomeado para o cargo de desembargador da Corte de Apelação do Estado, hoje Tribunal de Justiça, em . Casara-se, no início de , com Antônia Nunes Cardoso, de cujo matrimônio advieram os filhos Nerione, Dário ne e Delcione Nunes Cardoso. Nessa quadra, fez parte da “ala esquerdista” do Partido Social Republicano (PSR), de Goiás.

O jovem jurista assumiu a presidência do Tribunal de Justiça do Estado, exercendo o mandato presidencial por oito anos. Nesse período integrou o Tribunal Regional Eleitoral de Goiás, cuja presidência também exerceu (/), cabendo-lhe a honrosa tarefa de organizar e instalar a Justiça Eleitoral de Goiás, quando esta foi restabelecida. A Constituição de , fruto do Estado Novo, de caráter ditatorial, extinguiu a Justiça Eleitoral em todo o país, o jornal O Popular, de Goiânia, noticiou em sua edição de , a realização da sessão extraordinária de instalação do Tribunal Regional da Justiça Eleitoral, “do qual fazem parte o Desembargador Dário Délio Cardoso, presidente do Tribunal de Apelação do Estado; Desembargador Jorge de Morais Jardim, Doutores Heitor Fleury e Celso Hermínio Teixeira, Juízes de Direito da Comarca de Goiânia, e o Desembargador Jovelino de Campos, advogado”. Era a democracia que se restaurava, com as suas instituições, inclusive a instituição crucial para a efetivação do regime democrático, a Justiça Eleitoral. Dário participou ainda, ativamente, no ano de , da fundação da respeitável Academia Goiana de Letras (AGL), ombreando-se aos intelectuais Colemar Natal e Silva, Victor Coelho de Almeida, Albatênio Caiado de Godoy, Joaquim Carvalho Ferreira e Augusto Ferreira Rios. O Dr. Pedro Ludovico Teixeira, interventor federal em Goiás, assumiu a condição de Presidente honorífico da entidade, cuja presidência de fato passou a ser exercida pelo vice-presidente, professor Colemar Natal e Silva.

O professor Dário integrou o grupo dirigente da entidade literária até o ano de , ajudando a consolidar essa que é hoje a mais representativa das instituições culturais do Estado. Aposentou-se o Desembargador Dário Délio Cardoso, após longa carreira no serviço público, em . Nessa quadra, foi eleito Senador Federal, assumindo o mandato em , integrando, nessa qualidade, a Assembleia Nacional Constituinte, tendo sido um dos signatários da Constituição de . Exerceu a presidência da importante Comissão de Constituição e Justiça naquela Casa parlamentar, onde também foi líder do Governo.

Segundo registros do pesquisador Sérgio Soares Braga, em “Quem é quem na Assembleia Constituinte de ” (Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados), o senador Dário assumiu as funções na Assembleia Constituinte em , oferecendo 36 emendas ao projeto de Constituição, a maior parte relativas aos capítulos do Poder Judiciário e da Educação. Na tribuna, proferiu discursos “enumerando as agruras do homem do campo e reivindicando medidas de amparo ao produtor rural”. Por várias vezes utilizou-se da palavra para defender sua própria figura e a do ex-interventor Pedro Ludovico (PSD/GO) dos libelos proferidos da tribuna pelo udenista goiano Jales Machado (UDN/GO). Seu espírito democrático transparecia em suas propostas parlamentares, sobressaindo as que estabeleciam a eleição dos membros do TRE pelos Tribunais de Justiça e a que reintegrava em seus cargos os professores catedráticos vitalícios afastados em virtude de dispositivo da Constituição de . Essa Carta Política foi denominada “Polaca” porque tinha cunho autoritário.

Com a institucionalização da Universidade Federal de Goiás, Dário foi nomeado professor catedrático da cadeira de Direito Constitucional, por decreto de . Na efervescente década de , vamos encontrar o professor Dário em fecunda atuação na nova capital federal, no exercício dos cargos de Procurador-Geral do Instituto Nacional de Imigração e Colonização, hoje Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA); Procurador Geral da Justiça do Distrito Federal, empossado em e, no ano seguinte, de , figura nos quadros do Ministério da Viação e Obras, na condição de Assessor Jurídico do Gabinete do Ministro, vindo a exercer o mesmo cargo no Ministério da Educação e Cultura, um ano e meio depois, em .

Cumulativamente, em demonstração de extraordinária capacidade de trabalho, respondia pela assessoria jurídica da Presidência da NOVACAP (Companhia Urbanizadoras da Nova Capital), desde , de forma intermitente. Cumpriu ainda mandato de deputado federal, por Goiás, eleito em , pelo PSD. A agitação política e cultural dessa década, em que se verificou a renúncia do Presidente da República Jânio Quadros, a instituição do parlamentarismo, por breve período, e a instalação do regime militar, após o golpe que afastou o Presidente João Goulart, foi testemunhado pelo jurista goiano, protagonista naquele cenário, mas que dele saiu incólume, respeitado e prestigiado.

Com sua prodigiosa capacidade de trabalho, Dário esteve presente nas raízes das principais entidades culturais de seu Estado natal, logrando escrever ainda trabalhos jurídicos de excepcional valor, como “A Família”, “Mandado de Segurança” e “Formas de Governo e formas de Estado”, tendo sido esta sua tese de concurso para a cátedra universitária. Isso não bastasse e afinado com o espírito revolucionário do seu tempo, integrou comissões que visitaram os Estados Unidos da América do Norte (), percorrendo as principais universidades do País, tendo proferido conferência na “Round Table Conference on Latin American Studies”. No ano de chefiou a Missão Parlamentar Brasileira que visitou oficialmente, a convite, o Parlamento Britânico.

O menino de Corumbá, que esteve em plagas distantes, registrou-se também como jornalista profissional, colaborando em jornais e revistas especializadas em assuntos jurídicos. Foi colaborador de Redação do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro. Contemplado, ao longo da vida, com várias medalhas e diplomas honoríficos, integra a galeria dos maiores vultos do cenário cultural do Estado de Goiás, nos extraordinários e transformadores anos do século XX.

Sua geração testemunhou o nascimento do socialismo, os estertores da crise do capitalismo e seu recrudescimento, sofreu as dores de duas guerras mundiais e os primeiros passos da globalização mundial. Falecido em Brasília, a , aos 88 anos de idade, o professor Dário Délio Cardoso pode ter sua existência comparada a uma frondosa árvore, que propiciou frutos para o futuro de seu país, no magistério exemplar; abrigo para os desassistidos da sorte, na sua atuação parlamentar, e posição altiva, intemerata e igualitária, na distribuição da justiça, cuja judicatura não deixou conspurcar. Foi, assim, um jurista de alto quilate, que dignificou a história da Nação e do Estado brasileiros.

 

01 Itaney Campos é Desembargador do TJGO, Juiz Membro Substituto do TRE-GO na classe de Desembargador, Presidente da Comissão de Implantação do Centro de Memória e Cultura do Poder Judiciário de Goiás, Presidente da Comissão Permanente de Memória e Cultura do Poder Judiciário de Goiás, ocupante da Cadeira nº 37 da Academia Goiana de Letras, poeta, escritor.