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A Atuação do Tribunal Superior Eleitoral nas Eleições 2022: Uma análise sob a perspectiva de Karl Loewenstein

por José Anselmo Curado FleuryNota 01

 

1. Introdução

O presente artigo busca realizar uma análise da atuação do Tribunal Superior Eleitoral durante as eleições gerais de 2022, a partir de um estudo de caso específico. O artigo se insere dentro do contexto de crise democrática vivida nos últimos anos no Brasil e no mundo, na qual o Poder Judiciário teve atuação destacada enquanto mantenedor do regime democrático.

A análise tem como ponto de partida o conceito de democracia militante concebido pelo alemão Karl Loewenstein, segundo o qual os regimes democráticos deveriam buscar ferramentas e meios para se proteger dos movimentos nazi-fascistas que faziam parte do contexto político da época.

Tratando-se de uma obra de 1937, necessário se fez buscar sua atualização e contextualização à realidade atual, o que foi feito com as ideias trazidas especialmente pelos Professores Lênio Streck e Marcelo Cattoni, que em artigos recentes evidenciaram que as decisões judiciais de proteção da democracia não configuram excepcionalidade ou arbitrariedade mas são medidas constitucionais tomadas em face de atos ilícitos perpetrados com o objetivo final de ruptura democrática.

Partindo-se desse norte teórico, foi feita a análise da atuação prática do Tribunal Superior Eleitoral, que utilizando-se de instrumentos constitucionais, previstos na legislação brasileira, agiu para afastar práticas abusivas que visavam criar um ambiente de enfraquecimento da Democracia, através do questionamento injustificado do resultado eleitoral, transformando o ataque sistematizado à Justiça Eleitoral como estratégia político-eleitoral.

A proposta do artigo é contribuir para a reflexão a respeito da necessidade de invocação do conceito de democracia militante e os limites e legitimidade da atuação jurisdicional na defesa do Estado de Direito.


2. Democracia Militante X Democracia Constitucional

O conceito de "Democracia Militante" foi desenvolvido pelo alemão Karl Loewenstein, em artigo científico publicado no ano de 1937, denominado Militant Democracy and Fundamental Rights, no qual, ao analisar o processo de ascensão ao poder por ideologias extremistas, estabeleceu que o fascismo não seria uma ideologia política mas uma "técnica de tomada de poder" e que os regimes democráticos poderiam e deveriam se defender contra o avanço do autoritarismo.

O grande paradoxo da tese de Loewenstein reside no fato de que o autor defende o extrapolamento dos limites constitucionais quando o objetivo é a defesa intransigente da democracia, de forma que governos constitucionais estariam autorizados a se utilizar de poderes heterodoxos para combater movimentos que visassem a destruição da Constituição e do Estado Democrático:

Se a democracia acredita na superioridade dos seus valores absolutos sobre os chavões oportunistas do fascismo, deve estar à altura das exigências do momento, e devem ser feitos todos os esforços possíveis para a salvar, mesmo com o risco e o custo de violar princípios fundamentais (LOEWENSTEIN, 1937, p. 432. Tradução livre) Nota 02.

O conceito de Loewenstein ressurgiu no debate público e acadêmico a partir da assunção de governos autocráticos ao redor do planeta, vivenciada nas últimas décadas, o que trouxe o questionamento a respeito de como salvaguardar os regimes democráticos em meio à crise de representatividade das instituições e do contínuo ataque de governos e políticos populistas contra as bases fundamentais daquilo que conhecemos como democracia liberal.

Suscitado constantemente em debates e artigos acadêmicos, o conceito de democracia militante chegou à Suprema Corte brasileira, estando presente no voto do Ministro Edson Fachin e do Ministro Gilmar Mendes por ocasião do julgamento da ADPF 572, que julgou a constitucionalidade do chamado "inquérito das fake news", instituído por Portaria do STF com fundamentação no Regimento Interno daquele tribunal.

Marcelo Cattoni e Almir Megali (2022) pontuam que não estava entre os objetivos de Loewestein, ao formular o conceito de democracia militante, apresentar uma "técnica argumentativa" que pudesse ser utilizada por tribunais no julgamento de constitucionalidade de eventuais atos autoritários.

Prosseguindo em sua análise, alertam para a contradição de se utilizar referido conceito em um julgamento de constitucionalidade, uma vez que a necessidade de evocação da democracia militante poderia sugerir, ainda que implicitamente, a incompatibilidade daquele inquérito com a Constituição, o qual buscaria a sua legitimidade não no texto constitucional, mas na defesa autoritária da própria democracia.

Para superação desta contradição, sem abdicação da necessária defesa das instituições democráticas, os autores recorrem à posição originalmente defendida por Lenio Streck (STRECK, 2022): o inquérito das fake news e as decisões tomadas pelo Tribunal Superior Eleitoral ao longo do processo eleitoral de 2022 não se configuram como excesso ou extrapolamento dos poderes constitucionais, mas se traduzem na defesa da instituição e na garantia do devido processo eleitoral, sendo desnecessário se afastar as garantias constitucionais para se promover a defesa da democracia.

Destacando a necessidade de um aprofundamento teórico-conceitual, Streck relembra que o abuso do direito não pode ser considerado um direito, de modo que não há nada de democrático ou constitucional em se tolerar passivamente ataques à democracia e às instituições em nome de um suposto respeito à liberdade de expressão, pois esta garantia fundamental não protege o discurso de ódio e à incitação à ruptura institucional.

Em síntese, para Streck, a nossa democracia constitucional já dispõe dos elementos e ferramentas indispensáveis para a sua própria defesa, sendo imperioso distinguir as manifestações violentas e intolerantes do exercício constitucional da liberdade de expressão, de modo que a Constituição tutele e proteja os direitos, nunca os abusos.


3. O Questionamento à atuação da Justiça Eleitoral nas Eleições 2022

O questionamento a respeito da integridade e legitimidade da atuação da Justiça Eleitoral no Brasil não foi uma novidade das eleições de 2022, sendo um assunto constantemente lançado ao debate público entre 2018 e 2022. A retórica contestadora teve início ainda em 2018, quando foi protocolada no TSE o requerimento 2018.00.000013829-4, o qual veiculava "denúncia de possíveis indícios de materialidade de divergência de dados em apuração eleitoral e transparência no processo eleitoral". Nota 03

A suposta denúncia, prontamente rechaçada pelo Tribunal Superior Eleitoral Nota 04, foi utilizada como peça de desinformação e amplamente compartilhada, com a afirmação falsa de que o candidato vitorioso nas eleições presidenciais de 2018 teria sido eleito ainda no 1° turno. Nota 05

O questionamento da atuação da Justiça Eleitoral foi realizado algumas vezes durante o período entre as eleições de 2018 e as eleições de 2022, intervalo de tempo em que houve declarações de autoridades da República a respeito de uma suposta fraude nas eleições de 2018. Nota 06

No âmbito do Congresso Nacional, houve mobilização de parlamentares na tentativa de aprovação da chamada PEC do Voto Impresso (Proposta de Emenda à Constituição 135/19), que visava promover a impressão de "cédulas físicas conferíveis pelo eleitor" durante o registro dos votos em eleições, proposta essa que acabou rejeitada pelo Plenário da Câmara dos Deputados. Nota 07

Com a aproximação do período eleitoral de 2022, o chefe do Poder Executivo à época chegou a convocar uma reunião com embaixadores, realizada no Palácio da Alvorada em 18 de julho do referido ano, na qual realizou afirmações, sem provas, de que as urnas eletrônicas não seriam seguras, proferindo ainda críticas diretas ao então Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Edson Fachin, e ao seu antecessor no cargo, Ministro Luís Roberto Barroso. Nota 08

Esse fato posteriormente foi objeto da AIJE n° 0600814-85.2022.6.00.0000, pelo qual o Tribunal Superior Eleitoral condenou o ex-presidente da República envolvido à inelegibilidade por oito anos, entendendo que houve abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação consubstanciado no uso da estrutura da Presidência da República e do cargo para promoção de uma reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada com desvio de finalidade, visando a atacar o sistema eletrônico de votação em prol de dividendos eleitorais. Nota 09

Após a realização do primeiro turno das eleições, o número de boatos e desinformações visando atacar a Justiça Eleitoral aumentou substancialmente, o que obrigou o Tribunal Superior Eleitoral a se posicionar oficialmente, com a divulgação de esclarecimentos a respeito das diversas afirmações falsas que estavam sendo difundidas no ambiente virtual: Nota 10

O primeiro turno das Eleições Gerais de 2022, realizado em 2 de outubro, e os dias que sucederam o pleito foram marcados por uma intensa proliferação de notícias falsas relacionadas ao processo eleitoral. As principais fake news foram desmentidas pela Justiça Eleitoral e por agências de checagem parceiras do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no combate à desinformação.

Entre os assuntos que ecoaram na rede mundial de computadores, estão acusações infundadas de fraude nas urnas, análises equivocadas dos Boletins de Urna (BUs) divulgados pelo TSE e mentiras sobre o funcionamento do sistema de totalização, responsável por somar os votos de todo o eleitorado brasileiro. Teorias conspiratórias absurdas, que parecem ter emergido direto da darkweb, também encontraram adeptos dispostos a propagá-las nos porões da internet.

Realizada a votação do segundo turno e apuradas as urnas, obteve-se o resultado oficial que apontava a eleição do candidato de oposição, impondo uma derrota eleitoral à então chapa governista.

Logo após a divulgação do resultado das eleições, observou em várias regiões do país uma radicalização no comportamento de uma parcela de apoiadores do grupo político derrotado. Poucas horas após o anúncio do resultado oficial, grupos de militantes inconformados com o resultado eleitoral iniciaram bloqueios de rodovias em pelo menos 23 estados e no Distrito Federal. Nota 11

O fim do período eleitoral não trouxe o esperado apaziguamento do cenário político. Ao contrário, a realização de novos atos de questionamento da Justiça Eleitoral, prolongou o clima de tensão institucional.

Nesse contexto, sobreveio a Petição Cível nº 0601958-94.2022.6.00.0000, protocolada no Tribunal Superior Eleitoral apenas 23 dias após a realização do segundo turno das eleições presidenciais, que trazia novos questionamentos contra o sistema eleitoral, em especial as urnas eletrônicas.

Nos dias que se seguiram, iniciaram-se acampamentos em frente a quarteis, motivados pela rejeição do resultado eleitoral e com pedidos explícitos de intervenção militar Nota 12, situação que obteve seu ápice no dia 08 de janeiro de 2023, com a invasão e depredação dos edifícios da Praça dos Três Poderes, na Capital Federal. Esses fatos são objeto da Ação Penal (AP) 2668, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, que apura a tentativa de golpe de Estado destinada a impedir a posse do governo eleito em 2022. Nota 13

O questionamento do resultado eleitoral, sem a apresentação de indícios ou provas concretas de qualquer tipo de fraude, não é um acidente histórico mas se insere no contexto global de ascensão do populismo de grupos extremistas, que valendo-se das funcionalidades da tecnologia e de sofisticadas técnicas de difusão de mensagens em redes sociais, busca canalizar em seu favor sentimentos difusos do eleitorado, em especial a cólera, o medo e a indignação (EMPOLI, 2019, p. 70).

Com o despertar desses sentimentos em uma parcela da população abre-se o leque para a atuação política, com o reforço de milhares de militantes engajados pelo algoritmo e pela cólera e movidos por um conspiracionismo baseado em uma interpretação distorcida dos fatos mais básicos (EMPOLI, 2019, p. 72).

É nesse contexto de utilização massiva da desinformação e o engajamento de uma parcela significativa do eleitorado em teorias conspiracionistas direcionadas contra a atuação da Justiça Eleitoral, que são realizadas as eleições gerais de 2022.

Nessa quadra histórica, além de exercer sua competência constitucional ordinária de organizar as eleições, coube também ao Tribunal Superior Eleitoral criar campanhas de combate à desinformação e se defender institucionalmente de variadas formas de ataque à sua função constitucional.


4. A Petição Cível

A Petição Cível nº 0601958-94.2022.6.00.0000 foi autuada no Tribunal Superior Eleitoral às 15h56m do dia 22 de novembro de 2022. A peça se tratava de uma representação eleitoral para verificação extraordinária proposta inicialmente pela Coligação "Pelo Bem do Brasil", que havia sido derrotada no pleito eleitoral.

A Coligação requerente alegava, em suma, que teriam sido constatadas "evidências contundentes" do mau funcionamento de urnas eletrônicas, através de eventos registrados nos arquivos "Logs de Urna". Tais evidências teriam sido constatadas em laudo técnico de auditoria realizada pela entidade Instituto Voto Legal- IVL, contratada pela requerente. Ao final, requeria a invalidação dos votos decorrentes das urnas em que fossem comprovadas as desconformidades, com a posterior modificação do resultado do segundo turno das eleições de 2022.

Às 16h39m do mesmo dia foi proferido despacho pelo Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Alexandre de Moraes, informando que "as urnas eletrônicas apontadas na petição inicial foram utilizadas tanto no primeiro turno, quanto no segundo turno das eleições de 2022", razão pela qual a parte autora deveria aditar a petição inicial para que o pedido abrangesse ambos os turnos das eleições, sob pena de indeferimento.

No dia seguinte, 23 de novembro de 2022, às 16h19m, a Coligação requerente protocolou peça interlocutória na qual requereu que fosse "mantido como escopo inicial da Verificação Extraordinária o Segundo Turno da Eleição de 2022”, sob a alegação de que "estender a verificação extraordinária pretendida também para o primeiro turno parece ser medida açodada, especialmente porque, como efeito prático, traria a própria inviabilidade da medida ora pretendida".

Poucas horas depois, às 20h17m, foi proferida decisão pelo Ministro Alexandre de Moraes, a qual indeferiu liminarmente a petição inicial, tanto pela inépcia quanto pela ausência de indícios e circunstâncias que justificassem a instauração de verificação extraordinária. A decisão ainda condenou a requerente ao pagamento de multa por litigância de má-fé no valor de R$ 22.991.544,60 (vinte e dois milhões, novecentos e noventa e um mil, quinhentos e quarenta e quatro reais e sessenta centavos), correspondentes a 2% (dois por cento) do valor arbitrado à causa.

Os pontos da decisão que merecem destaque dizem respeito à caracterização do requerimento como ato atentatório ao Estado Democrático:

A total má-fé da requerente em seu esdrúxulo e ilícito pedido, ostensivamente atentatório ao Estado Democrático de Direito e realizado de maneira inconsequente com a finalidade de incentivar movimentos criminosos e anti-democráticos que, inclusive, com graves ameaças e violência vem obstruindo diversas rodovias e vias públicas em todo o Brasil, ficou comprovada, tanto pela negativa em aditar-se a petição inicial, quanto pela total ausência de quaisquer indícios de irregularidades e a existência de uma narrativa totalmente fraudulenta dos fatos.

(...)

Os Partidos Políticos, financiados basicamente por recursos públicos, são autônomos e instrumentos da Democracia, sendo inconcebível e inconstitucional que sejam utilizados para satisfação de interesses pessoais antidemocráticos e atentatórios ao Estado de Direito, à Justiça Eleitoral e a soberana vontade popular de 156.454.011 (cento e cinquenta e seis milhões, quatrocentos e cinquenta e quatro mil e onze) eleitoras e eleitores aptos a votar.

Interposto recurso administrativo, foi este julgado pelo Plenário do TSE na data de 15 de dezembro de 2022, ocasião em que o Tribunal, por maioria, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator, vencido parcialmente o Ministro Raul Araújo, cuja divergência restringiu-se ao valor da base de cálculo para aplicação da multa e a restrição dos bloqueios ao percentual de 30% do Fundo Partidário, tendo em sua declaração de voto reiterado o caráter temerário da petição do Partido Liberal.


5. Análise

O julgamento deste caso, realizado por meio de decisão monocrática posteriormente confirmada em julgamento de recurso pelo plenário, foi realizado em consonância com a Constituição Federal e a legislação processual civil, não havendo elementos que destoem do devido processo legal ou que possam ser considerados como um extrapolamento da competência constitucional do Tribunal Superior Eleitoral.

A inépcia da petição, que também explicita sua natureza temerária, decorre do pedido inicial que restringia a discussão do suposto mau funcionamento das urnas eletrônicas apenas no segundo turno das eleições presidenciais, sendo lógico e evidente que as urnas questionadas foram utilizadas nos dois turnos para as eleições de todos os cargos.

A temeridade se torna ainda mais evidente diante do fato de que o partido requerente obteve a maior bancada de parlamentares eleitos nessas mesmas eleições, com 99 Deputados e 14 Senadores e seria o maior prejudicado em uma eventual anulação de votos das urnas questionadas.

Concedido prazo para o aditamento da inicial, o partido requerente recusou-se a aditar o pedido para abranger apenas o segundo turno das eleições, explicitando que o objetivo buscado não era a verificação de confiabilidade das urnas mas a insurgência face ao resultado da eleição presidencial, em deturpação da finalidade da verificação extraordinária.

A Resolução n° 23.673/2021 do Tribunal Superior Eleitoral, que dispõe sobre os procedimentos de fiscalização e auditoria do sistema eletrônico de votação, prevê a possibilidade de que as entidades fiscalizadoras solicitem verificação extraordinária após o pleito, tendo como requisito a apresentação de fatos, indícios e circunstâncias que a justifiquem.

A petição apresentada se fundamentava apenas em um "laudo técnico" elaborado por um instituto contratado pelo próprio partido e que trazia alegações de inconsistência em urnas de modelos antigos, o que segundo o partido poderia representar indício de fraude, sem no entanto apresentar provas ou sequer indícios que justificassem medida tão gravosa.

Essas alegações foram prontamente rechaçadas pela Secretaria de Tecnologia de Informação do Tribunal Superior Eleitoral, tendo essas informações sido transcritas na decisão de indeferimento da representação, tendo sido consignado que todas as urnas possuem, além da identificação patrimonial, um número interno denominado "código de identificação de urna” que permite a individualização de cada urna utilizada, além de possibilitar o rastreamentos dos resultados produzidos por cada equipamento.

A razões técnicas e jurídicas para indeferimento da petição inicial estão bem delineadas pela ausência de provas ou indícios mínimos, bem como pela forma atécnica com que se efetuou o requerimento, com pedido para investigação apenas do segundo turno da eleição presidencial, em detrimento dos demais cargos nos quais coincidentemente o partido peticionante havia tido relevante sucesso eleitoral.

Quanto a condenação por litigância de má-fé, trata-se de uma medida prevista em lei e comum em processos judiciais, mesmo no âmbito da Justiça Eleitoral, mormente quando há a mobilização da estrutura do Poder Judiciário para fins escusos, não havendo nenhum ineditismo ou hetedoroxia na aplicação de multa, sendo este tipo de condenação uma forma de se desencorajar a proliferação de demandas temerárias. Nota 14

O valor da multa, embora vultoso quando analisado individualmente, foi calculado de maneira proporcional e objetiva em relação ao pedido feito, sendo correspondente a 2% do arbitrado da causa, resultante do número de urnas impugnadas (279.383) multiplicado pelo custo unitário das últimas urnas eletrônicas adquiridas pelo TSE (R$ 4.114,70).

Destaque-se que a rapidez e a coesão técnica da decisão proferida pelo Ministro Presidente, que indeferiu liminarmente a petição inicial, impediu que o peticionante alcançasse o objetivo de mobilização da opinião pública a favor da tese conspiracionista de fraude nas eleições, o que poderia gerar o recrudescimento da mobilização de grupos radicalizados que àquela altura já se encontravam acampados à frente de quarteis ao longo do território nacional.

O efeito da petição foi contrário ao pretendido, como se viu em seguida, pela atitude dos representantes dos partidos Progressistas e Republicanos, integrantes originários da Coligação "Pelo Bem do Brasil", que não apenas reconheceram o resultado das eleições como solicitaram sua exclusão daquele feito temerário, o que contribuiu para o esvaziamento político dessa tentativa de constrangimento institucional ao TSE.

Deve-se ressaltar que o ineditismo do feito sob análise não se deu em relação à forma ou fundamentos da decisão judicial mas sim em relação aos próprios fatos, uma vez que inexiste na história republicana brasileira uma tentativa de se invalidar os votos de mais de 279 mil urnas, apenas em relação à eleição presidencial, modificando-se substancialmente o seu resultado.

Afigura-se natural que o deslinde do caso assuma contornos de ineditismo, sendo necessário reconhecer que essa excepcionalidade não está na atuação do Tribunal Superior Eleitoral mas na gravosidade da conduta dos representantes do partido requerente, que manejaram uma petição sem a devida fundamentação técnica e manifestamente inepta.

A análise deste caso demonstra que a decisão proferida pelo Ministro Presidente, posteriormente mantida em sede de recurso pelo Plenário do Tribunal Superior Eleitoral, foi rigorosamente fundamentada na legislação processual brasileira, não havendo nenhum aspecto jurídico que destoe da aplicação coerente da lei ou dos precedentes da justiça eleitoral.

Não houve por parte daquela corte, neste caso em específico, nenhuma medida que possa ser considerada como violadora do devido processo legal ou restritiva do direito de petição ou do direito de defesa, tendo a Corte atuado com o rigor e celeridade que a causa e o momento políticos e histórico exigiam.

Desta forma, pode-se afirmar desnecessária qualquer remissão ao conceito de democracia militante quando se fala da atuação do Tribunal Superior Eleitoral, pois este órgão judicial se pautou dentro dos limites e competências definidos pelo nosso sistema constitucional, não havendo se falar em "supressão de direitos" ou de adoção de medidas inconstitucionais, como preconizado por Loewenstein em sua definição de democracia militante.

O lastro da atuação do Tribunal Superior Eleitoral na Eleições Gerais de 2022 não está na invocação da democracia militante mas sim na Constituição Federal, que resguarda o regime democrático (artigo 17) e impõe aos poderes públicos o zelo pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas (artigo 23, I).


6. Conclusão

A discussão apresentada neste artigo demonstra que a defesa da democracia prescinde de qualquer fundamentação embasada no conceito de democracia militante, eis que desnecessária e indesejável é a supressão de garantias constitucionais em nome da defesa das instituições.

Mais do que a simples desnecessidade de utilização de expedientes não-constitucionais ou da suspensão de direitos e garantias fundamentais, ressoa o alerta de que a invocação reiterada ao conceito de democracia militante, à maneira cunhada por Karl Loewenstein, na fundamentação de decisões judiciais pode soar como uma espécie de "reconhecimento implícito" de que essas decisões seriam de fato inconstitucionais.

A defesa da Democracia exercida pela via judiciária muitas vezes exigirá decisões cuja natureza pode até vir a ser considerada extraordinária, mas não necessariamente se traduzem em medidas de exceção ou violadoras das garantias democráticas.

Isso porque o contexto fático e as condições sociais com as quais as instituições se deparam são, quase sempre, extravagantes e desafiantes, exigindo firmeza e convicção no uso das prerrogativas institucionais, bem como um sólido compromisso com a concretização da Democracia e manutenção da ordem constitucional fundada na independência e harmonia entre os poderes.

Nessa perspectiva, denota-se que a atuação judicial do Tribunal Superior Eleitoral durante as eleições de 2022 não violou os limites legais e constitucionais. A Constituição Federal de 1988, com sua divisão de competências entre os poderes e a atribuição da organização das eleições ao Poder Judiciário foi capaz de resistir aos ímpetos de desestruturação e rompimento do Estado Democrático de Direito.

É necessário que nosso sistema político e jurídico saiba discernir e diferenciar, dentre os atores que compõe o jogo democrático, aqueles que têm não só a predisposição para a ruptura da ordem constitucional mas efetivamente agem e atuam para desequilibrar a democracia, fazendo da subversão da ordem democrática a sua bandeira política, tentando-se valer das próprias garantias constitucionais como meio de proteção para uma conduta ilícita, antidemocrática e inconstitucional.

 

Referências

Nota 01 Advogado com atuação na área eleitoral e cível. Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (2016). Especialista em Direito Político Eleitoral pela Faculdade Atame (2021). Membro do Grupo de Pesquisa "Direito Eleitoral e Democracia" da Escola Judiciária Eleitoral da Bahia.

Nota 02 If democracy believes in the superiority of its absolute values over the opportunistic platitudes of fascism, it must live up to the demands of the hour, and every possible effort must be made to rescue it, even at the risk and cost of violating fundamental principles.

Nota 03 AOS FATOS. Denúncia integral: fraude que impediu vitória de Bolsonaro no 1º turno. São Paulo, 5 out. 2020. Disponível em: https://static.aosfatos.org/media/cke_uploads/2020/10/05/denuncia-integra.pdf. Acesso em: 22 nov. 2023.

Nota 04 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Ofício GAB-DG nº 202/2020. Disponível em: https://sei.tse.jus.br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&codigo_verificador=1239545&codigo_crc=E38DD3E6&hash_download=19563254d18128f12551a94c644c9b8964bd7f5297b650fe77fe4fec1cdfec191cbe842cd586ae493a4d2c6096b4645c2027fa55de60f45fe74b9237562166aa&visualizacao=1&id_orgao_acesso_externo=0. Acesso em: 22 nov. 2024.

Nota 05 AOS FATOS. Denúncia de fraude que impediu vitória de Bolsonaro no 1º turno foi arquivada por falta de provas. Aos Fatos, 17 nov. 2022. Disponível em: https://www.aosfatos.org/noticias/denuncia-de-fraude-que-impediu-vitoria-de-bolsonaro-no-1-turno-foi-arquivada-por-falta-de-provas/. Acesso em: 22 nov. 2024.

Nota 06 UOL. Bolsonaro diz que houve fraude em 2018, mas nega acesso a provas via LAI. UOL Confere, 11 mar. 2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2021/03/11/bolsonaro-fraude-eleicao-2018-provas-lei-acesso.htm. Acesso em: 22 nov. 2024.

Nota 07 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Câmara rejeita proposta que tornava obrigatório o voto impresso. Câmara Notícias, 10 ago. 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/792343-camara-rejeita-proposta-que-tornava-obrigatorio-o-voto-impresso/. Acesso em: 22 nov. 2024.

Nota 08 O GLOBO. Bolsonaro usa reunião com embaixadores para novos ataques sem provas às urnas eletrônicas e ao TSE. O Globo, 18 jul. 2022. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2022/07/bolsonaro-usa-reuniao-com-embaixadores-para-novos-ataques-sem-provas-as-urnas-eletronicas-e-ao-tse.ghtml. Acesso em: 22 nov. 2024.

Nota 09 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (TSE). Por maioria de votos, TSE declara Bolsonaro inelegível por 8 anos. Tribunal Superior Eleitoral, 30 jun. 2023. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2023/Junho/por-maioria-de-votos-tse-declara-bolsonaro-inelegivel-por-8-anos. Acesso em: 22 nov. 2024.

Nota 10 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Fato ou Boato: Justiça Eleitoral desmentiu as principais fake news sobre o processo eleitoral em 2022. Disponível em: <https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Outubro/fato-ou-boato-justica-eleitoral-desmentiu-as-principais-fake-news-sobre-o-processo-eleitoral-em-2022>. Acesso em 22/11/2024.

Nota 11 G1. Caminhoneiros fecham rodovias contra resultado das urnas após derrota de Bolsonaro. G1, 31 out. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2022/noticia/2022/10/31/caminhoneiros-fecham-rodovias-contra-resultado-das-urnas-apos-derrota-de-bolsonaro.ghtml. Acesso em: 23 nov. 2023.

Nota 12 AFP. Convencidos de fraude eleitoral, bolsonaristas acampam diante de quartéis no Brasil. UOL Notícias, 11 nov. 2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2022/11/11/convencidos-de-fraude-eleitoral-bolsonaristas-acampam-diante-de-quarteis-no-brasil.htm. Acesso em: 23 nov. 2023.

Nota 13 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). STF recebe denúncia contra núcleo 1 por tentativa de golpe de Estado. Supremo Tribunal Federal, 22 abr. 2025. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-recebe-denuncia-contra-nucleo-1-por-tentativa-de-golpe-de-estado/. Acesso em: 26 abr. 2025.

Nota 14 ELEIÇÕES 2018. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO ELEITORAL. CANDIDATOS AOS CARGOS DE GOVERNADOR E VICE–GOVERNADOR NÃO ELEITOS. (...) CONDENAÇÃO POR LITIGÂNCIA DE MÁ–FÉ. EMBARGOS PROTELATÓRIOS. MANUTENÇÃO DAS MULTAS. AGRAVO DESPROVIDO. (...) 3. O ajuizamento de AIJE com o objetivo de criar factóide político e divulgá–lo em blog e no Youtube em data próxima à eleição para prejudicar a campanha dos agravados caracteriza litigância de má–fé, por mover a estrutura do Poder Judiciário para fins escusos. 4. A insistência da parte com a prática de atos processuais voltados para a narrativa criada na inicial, mesmo após comprovado que o suposto bunker era na verdade o escritório de campanha dos agravados, corrobora a existência de litigância de má–fé e impõe a aplicação de multa em seu patamar máximo, nos termos do art. 81 do CPC. 5. Diante da absoluta improcedência da ação e da caracterizada má–fé da parte, mostra–se correta a aplicação de multa em razão da oposição de embargos de declaração protelatórios na origem. 6. Agravo regimental a que se nega provimento. (TSE - RO-El: 060226245 BELÉM - PA, Relator: Min. Edson Fachin, Data de Julgamento: 16/12/2021, Data de Publicação: 03/02/2022)