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Participação feminina na política: efetividade da cota de gênero, ADI nº 5.617 e a atuação de partidos, sociedade e Ministério Público

por Marina Almeida MoraisNota 01

 

O Brasil tem aproximadamente 207 milhões de habitantes, segundo os dados da projeção feita pelo IBGE para o ano de . O censo é normalmente realizado a cada dez anos, sendo que, conforme os dados do último censo — realizado em , a população do Brasil compõe-se de 51,5% de mulheres e 48,5% de homens.

A despeito de serem maioria populacional, tais dados não se refletem proporcionalmente no campo político. Segundo instauram dados apresentados pelo TSE, 4.904 candidatos disputaram no ano de o cargo de deputado federal, dos quais apenas 945 (19,06%) candidaturas eram de mulheres, contra 3.969 (80,93%) de candidaturas masculinas. Destes, foram eleitos 468 candidatos a deputados federais e eleitas apenas 45. Portanto, em comparativo, dos 513 eleitos ao cargo, 91,22% eram homens e apenas 8,77% eram mulheres.

Em , segundo dados do sistema DivulgaCandContas [TSE], do total de candidatos daquelas eleições, 155.587 (31,60%) foram do sexo feminino, e 336.819 (68,40%) são homens.

O crescimento no número de candidaturas femininas, também reforçado pela minirreforma eleitoral de (Lei nº 12.034/2009 [Planalto]), que substituiu a expressão prevista na lei anterior — “deverá reservar” — para “preencherá”, todavia, ainda não reflete um quórum igualitário de participação.

Pela dicção anterior da norma, que determinava apenas a “reserva” de vagas, havia o argumento por parte das agremiações de que, embora houvesse reservado, não teriam aparecido candidatas dispostas a ocupá-los. Com a alteração legislativa, que torna obrigatório o preenchimento, surgiu a figura das candidaturas fictícias.

Embora velha conhecida dos atuantes na seara do Direito Eleitoral, foi no pleito de que as “candidaturas fantasmas” tomaram proporções mais consideráveis, sendo objeto de questionamentos judiciais formulados por coligações e Ministério Público em todo o país.

As candidaturas fictícias constituem-se no lançamento de candidatas femininas fraudulentas, apenas com o intuito de cumprir a cota de gênero, sem, contudo, lhes oferecer o mínimo para concorrer, como tempo de propaganda, material de campanha ou recursos financeiros.

Em decisão pioneira, o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, nos autos do Recurso Eleitoral 370-54, de Santa Rosa de Viterbo – SP, cassou, por unanimidade, o diploma de todos os candidatos diretamente beneficiados pelo ato ilegal, além da declaração de inelegibilidade para quatro dos candidatos representados considerados responsáveis pela conduta fraudulenta. Segue a ementa:

EMENTA: RECURSO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2016. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DO PODER DE AUTORIDADE E FRAUDE ELEITORAL. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. COTAS DE GÊNERO. ART. 10, §3º, DA LEI Nº 9.504/97. QUESTÕES INICIAIS DE ORDEM PÚBLICA. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. "PODEM SER APURADOS INCLUSIVE EM SEDE DE AIJE, COM FUNDAMENTO EM EVENTUAL ABUSO DO PODER POLÍTICO POR PARTE DO PARTIDO/COLIGAÇÃO E DE SEUS REPRESENTANTES, QUE SUPOSTAMENTE FORJARAM CANDIDATURAS FEMININAS, E ATÉ MESMO COM FUNDAMENTO NA CONFIGURAÇÃO DE FRAUDE À LEI, EM PRIMAZIA DO PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DE JURISDIÇÃO, (…), A FIM DE SE GARANTIR A LISURA DO PLEITO" (TSE - RESP ELEITORAL Nº 24342, REL. MIN. HENRIQUE NEVES DA SILVA, DJE - , VOTO VISTA DA MIN. LUCIANA CHRISTINA GUIMARÃES LÓSSIO). IMPOSSIBILIDADE DE COLIGAÇÃO PARTIDÁRIA FIGURAR NO POLO PASSIVO. MÉRITO. CANDIDATURAS FICTÍCIAS. ATINGIMENTO DE COTA PARA O SEXO FEMININO APENAS COM O FIM DE SE ELEGER MAIS CANDIDATOS. CUMPRIMENTO DE MERA FORMALIDADE. ATO DESPROVIDO DE CONTEÚDO VALORATIVO E SEM INCENTIVO À PARTICIPAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA. A APRESENTAÇÃO DE MERO ESPECTRO DAS CANDIDATURAS FEMININAS AQUI QUESTIONADAS CONFIGURA FRAUDE AO DISPOSITIVO EM COMENTO E CONSEQUENTE ABUSO DO PODER COM A GRAVIDADE NECESSÁRIA A MACULAR A LISURA DO PLEITO DE . JUSTIFICATIVAS PARA A AUSÊNCIA DE QUALQUER ATO DE CAMPANHA EVIDENTEMENTE CONTRÁRIAS AOS FATOS AUFERIDOS E COMPROVADOS NOS PRESENTES AUTOS. FRAUDE ELEITORAL CONFIGURADA. APLICAÇÃO DA SANÇÃO DE INELEGIBILIDADE DO ART. 22, XIV, DA L.C. Nº 64/90, TÃO SOMENTE QUANTO AOS RESPONSÁVEIS PELA CONDUTA. PENA DE CASSAÇÃO A TODOS AQUELES QUE FORAM DIRETAMENTE BENEFICIADOS PELO ATO ILEGAL, JÁ QUE POSSIBILITOU O DEFERIMENTO DO REGISTRO DO DEMONSTRATIVO DE REGULARIDADE DE ATOS PARTIDÁRIOS - DRAP  DA COLIGAÇÃO "SD, PMN, PROS" E, CONSEQUENTEMENTE, VIABILIZOU SUAS CANDIDATURAS AO PLEITO PROPORCIONAL DE E AS RESPECTIVAS ELEIÇÕES, AINDA QUE COMO SUPLENTES. SENTENÇA REFORMADA. DE OFÍCIO, EXTINÇÃO DO FEITO, SEM JULGAMENTO DE MÉRITO, QUANTO À COLIGAÇÃO RECORRIDA, NOS TERMOS DO ART. 485, INCISO VI, DO CPC. NO MÉRITO, RECURSO PROVIDO, PARA JULGAR PROCEDENTE A AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL.

A devida penalização de uma fraude tão grave representa, certamente, um avanço no que tange ao ideal de igualdade de gênero na política brasileira, mas ainda não é suficiente. Conforme dados do TSE, uma em cada oito candidatas não receberam um voto sequer nas eleições para vereador em .

Tão grave quanto a mácula ao pleito eleitoral consubstanciada no lançamento de candidatas para mero preenchimento da cota de gênero, é o costumeiro abandono por parte das agremiações às candidatas femininas depois de passado o registro de candidatura. Não somente por privá-las de recursos financeiros e materiais de campanha, mas pela promessa vazia de assessoria jurídica e contábil, que por vezes não se cumpre, condenando as candidatas à falta de quitação com a Justiça Eleitoral, que lhes impede exercícios de cidadania básica.

Extremamente importante se torna, neste contexto, a atuação efetiva do Ministério Público Eleitoral, que já tem se mostrado bastante atuante, combatendo a prática das referidas fraudes. Aliado ao MP, cumpre aos cidadãos, sociedade, demais candidatos e partidos denunciar e repudiar a ocorrência de tal situação. Trata-se assim, mais do que uma questão jurídica, de uma questão de consciência.

Como bem acertadamente uma vez pontuou a advogada eleitoral Gabriela Rollemberg, “não se pode esperar igualdade no ponto de chegada se não há igualdade no ponto de partida”.

A bem da verdade, a questão da representatividade feminina não se cinge somente a ausência de candidatas eleitas, mas da própria oportunidade de lançamento e concorrência. Prova disso é o ambiente extremamente masculinizado que ainda se vislumbra no interior das agremiações e suas executivas.

É preciso, primeiramente, que as mulheres passem a ocupar cargos executivos nos partidos, que efetivamente participem das decisões coletivas internas. Assim, é de se esperar que as candidatas que preencham a cota não bastem tão somente a “possibilitar juridicamente” o registro dos candidatos masculinos, mas que elas queiram realmente concorrer, discursar, fazer campanha, e adentrar seriamente ao jogo eleitoral, oportunidade que por vezes não lhes é sequer concedida.

Avanço relevante neste aspecto está no financiamento de campanhas eleitorais femininas equiparável à ação afirmativa que determina os 30% de candidaturas deste gênero.

Na ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.617 – DF, decidiu o STF que limitar o percentual de verbas do Fundo Partidário destinado às candidatas é inconstitucional. A norma anterior preceituava que no mínimo 5% e no máximo 15% dos recursos do Fundo Partidário deveriam ser destinados a candidaturas das mulheres. Em adição, tais valores sequer eram exclusivos às campanhas, abrangendo outras finalidades, como programas de incentivo à participação das mulheres na política. O belo trecho do voto do Ministro Fachin merece reprodução:

É preciso reconhecer que ao lado do direito a votar e ser votado, como parte substancial do conteúdo democrático, a completude é alcançada quando são levados a efeito os meios à realização da igualdade. Só assim a democracia se mostra inteira. Caso contrário, a letra Constitucional apenas alimentará o indesejado simbolismo das intenções que nunca se concretizam no plano das realidades. A participação das mulheres nos espaços políticos é um imperativo do Estado e produz impactos significativos para o funcionamento do campo político, uma vez que ampliação da participação pública feminina permite equacionar as medidas destinadas ao atendimento das demandas sociais das mulheres.

Apenas com a evolução deste pensamento é que a democracia de gênero poderá ser efetivada. Atualmente, para cada sete vereadores homens há uma vereadora mulher. E os resultados não encontram correlação com indicadores como IDH, educação, saúde ou renda, o que demonstra que os brasileiros, de forma geral, votam menos em mulheres, independentemente de grau de instrução ou posição social.

Ponto a se combater são os estereótipos em relação à participação feminina na política, como Biroli (2010)Nota 02 explicita em sua obra, descrevendo a naturalização quanto à exclusão das mulheres na esfera pública, sendo utilizada como argumento de legitimação para o que a autora chama de “negócio de homens”. A autora demonstra que o argumento é levantado da seguinte forma, onde: “as mulheres não se interessariam pelos debates políticos e, menos ainda, por participar da política institucional porque estariam ‘naturalmente’, voltadas para o que lhes seria mais caro: a vida privada, a esfera doméstica, a maternidade.” (p. 274).

Fato é que o Brasil se encontra na 154ª posição no ranking da Inter-Parliamentary Union sobre representação feminina em parlamentos de 193 países, estando a frente apenas de países árabes, do Oriente Médio e Ilhas Polinésias.

Tais dados demonstram a urgência de conscientização neste sentido. Respeitada, naturalmente, a autonomia dos partidos políticos, é o caso de se encontrar meios que garantam mais voz ativa às mulheres, com o fito de que se encontrem devidamente representadas.

Como bem salientou Fachin, “a autonomia partidária não consagra regra que exima o partido do respeito incondicional aos direitos fundamentais, especialmente ao direito à igualdade”.

O ideal, naturalmente, seria uma consciência intrínseca à sociedade, tanto aos dirigentes de executivas partidárias, demais candidatos e governantes, mas na própria sociedade, para que passe efetivamente a considerar votar em mulheres para as diversas esferas de governo.

Enquanto essa mudança de pensamento não ocorre, todavia, é necessária cada vez mais a instituição de mecanismos jurídicos, denúncias e controle, para que ao menos o mínimo seja garantido, instrumentalizando as ações afirmativas que prestigiem o direito à igualdade.

Nota 01 Marina Almeida Morais. Advogada especialista em Direito Eleitoral. Palestrante. Colaboradora da Revista Jurídica da Procuradoria Geral do Estado de Goiás. Autora do artigo “A representação por condutas vedadas a agentes públicos e sua convivência com a investigação judicial eleitoral por abuso de poder político” publicado no livro Tratado de Direito Eleitoral publicado sob coordenação do Ministro Luiz Fux.

Nota 02 BIROLI, Flávia. Gênero e política no noticiário das revistas semanais brasileiras: ausências e estereótipos. Cadernos Pagu, n° 34, janeiro–junho de 2010, p. 269–299.