Verba Legis 2018

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O compliance aplicado aos partidos políticos: instrumento assecuratório da segurança jurídica das eleições

por Marcelo Arantes de Melo BorgesNota 01

 

1 Introdução

Inobstante, por diversos fatores, se encontre imbricado no inconsciente coletivo a ideia de que os partidos políticos são entidades ou instituições estatais, é certo que se tratam de pessoas jurídicas de direito privado, possuindo, segundo a Constituição FederalNota 02, autonomia para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre escolha, formação e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua organização e funcionamento.

Muito embora a Constituição Federal lhes confira essa natureza jurídica, são reservadas aos partidos políticos as diretrizes legais mínimas para que não se transborde de sua essencial função institucional e instrumental que é garantir o funcionamento do Estado Democrático de Direito, pois sem eles não há falar em sistema eleitoral e, de consequência, em representatividade, para uma gestão própria das pessoas jurídicas de direito privado “puras”, pois essas geralmente possuem fins lucrativos e a autonomia de gestão mais alargada pode eventualmente redundar em um salvo conduto para uma condução desregrada de suas atividades ou adstrita somente à observância de suas normas internas.

Para equilibrar essa natureza jurídica de direito privado com a sua função institucional, bem pelo fato de serem custeados com dinheiro do erário, em , sobreveio a Lei nº 9.096 [Planalto], também conhecida como Lei dos Partidos Políticos, que disciplinou os seus requisitos mínimos de funcionamento, gestão e mecanismos de fiscalização, dentre eles as prestações de contas de suas receitas e despesas.

Todavia, verificou-se recentemente, às escancaras, que não só a lei específica, mas também as normas editadas pelo Tribunal Superior Eleitoral no exercício de seu poder regulamentar, se mostraram absolutamente ineficazes para conter os abusos (para dizer o mínimo) cometidos pelos partidos políticos, especialmente no que diz respeito à arrecadação e gastos de seus recursos.

A denominada Operação Lava Jato colocou holofotes de potência solar sobre a “simbiótica” relação entre a corrupção e o financiamento das campanhas políticas. Mostrou, ainda, quão ineficazes são os procedimentos das prestações de contas perante a Justiça Eleitoral, enquanto instrumento de fiscalização da arrecadação e dos gastos de campanhas de candidatos e dos próprios partidos.

Em , foi promulgada a denominada Lei Anticorrupção, como prenúncio, ao menos esperançoso, de uma nova perspectiva na relação da res pública com os setores produtivos privados.

Todavia, estudos realizados com cerca de 80 empresas de grande porte pela consultoria KPMG, durante a 40ª mesa de debates do ACI (Audit Committee Institute), realizada em , tendo por o tema "A Lei Brasileira Anticorrupção - Lei 12.846/2013"/"A Governança Corporativa e o Mercado de Capitais – Perspectivas para 2014", revelaram que cerca de 80% (oitenta por cento) delas apresentavam um grau elevado de desconhecimento da Lei AnticorrupçãoNota 03.

Com o advento da referida lei e, principalmente, com a deflagração da operação Lava Jato, observou-se uma forçosa preocupação das empresas que contratam com o Estado em adotar as denominadas práticas de compliance.

Pode-se dizer, assim, que a “perspectiva” que se desvelou para e que fora objeto da referida mesa de debates foi exatamente a deflagração da maior operação anticorrupção do mundo.

Foi revelada a prática de atos de corrupção envolvendo as maiores empresas do país, privadas e estatais, fundos de pensões, etc., que, por meio de seus executivos e dirigentes, estes geralmente nomeados por políticos indicados por determinados partidos, no caso das estatais, superfaturavam contratos administrativos e utilizavam a “gordura” para abastecer os caixas de campanha e também dos envolvidos.

A partir daí, constatou-se que adoção das regras de compliance tornou-se essencial para uma gestão escorreita de uma empresa em suas relações não só com o poder público, mas também com aquelas empresas com as quais se relacionam, a exemplo de fornecedores, colaboradores e parceiros.

As consequências da referida operação foram nefastas para as empresas envolvidas e, reflexamente, para a economia brasileira, pois as suas maiores empresas, privadas e estatais, estavam imbricadas no lamaçal da corrupção. Constatou-se, então, que as multinacionais protagonistas do maior escândalo de corrupção mundial viram suas notas de crédito serem vertiginosamente rebaixadas por agências de rating, resultando não só no vencimento antecipado de suas dívidas, mas também na inexorável necessidade de se recorrer ao instituto da recuperação judicial e aos acordos de leniência, pois, do contrário, a quebra imediata seria inevitável.

Por que não, então, considerando-se a natureza jurídica que ostentam, adotar-se rotinas e práticas visando o cumprimento das normas legais e regulamentares na órbita dos partidos políticos, cujas más-práticas afetam não só o sistema representativo, mas também a própria economia?

É essa a ideia que se pretende semear com o presente artigo.

 

2 O compliance

De maneira muito objetiva, Pierpaolo Cruz Bottini pontua que “Compliance — do termo inglês comply — significa o ato ou procedimento para assegurar o cumprimento das normas reguladoras de determinado setor. Vogel descreve o compliance como um ‘conceito que provem da economia e que foi introduzido no direito empresarial, significando a posição, observância e cumprimento das normas, não necessariamente de natureza jurídica’.Nota 04

Daí indagar-se, então, se a vasta legislação eleitoral disciplinando as condutas positivas e omissivas que os partidos e candidatos devem observar antes (gestão do grêmio), na preparação (pré-campanha) e durante as eleições, seria suficiente para garantir a lisura dos pleitos? Não seria somente uma questão de observar a lei e os regulamentos? Por que se falar em compliance eleitoral?

A vivência eleitoral vem mostrando que se a mudança não vier de dentro dos partidos, que é efetivamente o ente responsável pela representatividade eleitoral, somente a legislação, por mais abrangente e permeada de duras penas que seja, nada irá mudar quanto à lisura dos pleitos eleitorais e, consequentemente, em relação à insegurança jurídica que grassa nessa seara.

A judicialização das eleições passou a ser regra, e não sua exceção. E essa situação tem que mudar.

 

2.1 O compliance aplicado aos partidos políticos

Em , o TSE, no exercício de seu poder regulamentar, editou a Resolução nº 23.406, que determinava em seu art. 22, inciso I, a identificação, nas prestações de contas, dos doadores originários dos partidos políticos, ou, em suas palavras, a “identificação da sua origem e escrituração contábil individualizada das doações recebidas;”, evitando-se, assim, o recebimento das denominadas doações fantasmas, as de fontes vedadas ou escusas.

Os candidatos, por sua vez, na qualidade de beneficiários dos repasses das doações realizadas pelos seus partidos, deveriam revelar em suas prestações de contas os doadores originários das agremiações, sob pena de devolução ao Tesouro Nacional das importâncias que não tivessem a referida identificação. O que se seguiu nas eleições de foi uma enxurrada de condenações de candidatos a devolver as importâncias que lhes foram repassadas pelos seus partidos, uma vez que esses não cumpriram com a obrigação imposta pela legislação eleitoral de identificar os doadores originários e informá-los para que pudessem prestar contas na forma da citada resolução. Assim, a recalcitrância dos partidos eclodiu no patrimônio de seus filiados, então candidatos.

Esse exemplo revelou a necessidade de uma maior participação dos afiliados nas deliberações e atos de gestão de suas agremiações partidárias, de modo a exigir práticas, rotinas e mecanismos de controle das arrecadações e distribuição das receitas partidárias, fazendo com que seus dirigentes cumpram a legislação eleitoral, que se mostrou insuficiente para conter a ocultação deliberada da origem dos recursos recebidos pelos partidos.

E quem foram as “vítimas” dessas condutas partidárias, ou seja, quem foi obrigado a devolver os recursos de origem não identificada? Os candidatos, que, como se sabe, em sua maioria são meros coadjuvantes dos maiores expoentes/dirigentes das agremiações. Nada puderam fazer senão devolver ou tentar devolver os recursos percebidos de seus partidos para realizarem as suas campanhas, uma vez que os mesmos recalcitraram em repassar-lhes as informações exigidas nas prestações de contas.

Não deveriam os partidos ter uma rotina administrativa que propiciasse aferir a origem dos recursos e que reservasse aos seus afiliados a fiscalização da origem dessas receitas? Mecanismos simples que lhes permitissem, por exemplo, saber se os recursos de determinado doador, pela lei, seriam considerados como provenientes de fonte vedada?

Nas eleições de , será permitido o financiamento coletivo de campanhas, mediante o denominado crowdfunding. A Resolução nº 23.553, de [TSE], dispõe sobre as regras desse tipo de financiamento, traçando, objetivamente, as hipóteses de doações de fontes vedadas, destacando, nessa modalidade, as pessoas jurídicas (em razão da inconstitucionalidade decorrente do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650), as de origem estrangeira e as provenientes de pessoas físicas que exerçam atividade comercial decorrente de permissão pública.

Mas não seria prudente aos partidos, de modo a evitar futuras representações eleitorais (lato sensu), estender essa triagem dos recursos advindos dessa modalidade de arrecadação? Criar mecanismos que evitem, por exemplo, o recebimento de doações de pessoas beneficiárias de programas sociais, de pessoas condenadas por crimes contra o patrimônio (público e privado), provenientes dos denominados “laranjas” do crime organizado, são práticas simples e necessárias para assegurar que não se questione a legalidade da origem das receitas partidárias oriundas dos particulares.

Não menos indispensável a criação de rotinas e mecanismos que controlem a entrada dos recursos de modo a evitar que excedam aos limites de gastos de campanha estabelecidos pelo TSE, e, consequentemente, evitar a judicialização das eleições por conta de atos que importem em abuso de poder econômico, fraude, etc.

Da mesma maneira, como recebedor de recursos públicos advindos do fundo partidário, os partidos tem a obrigação de observar, em seus dispêndios, a lisura de seus fornecedores. E isso não é observado hoje em dia. Boas práticas de compliance com esse desiderato deveriam ser obrigatórias e compulsoriamente adotadas pelas agremiações. Realizar aquisições junto a fornecedores inidôneos é uma forma de burla à legislação eleitoral.

A título de exemplo, a PETROBRÁS adotou o mecanismo de Due Diligence de Integridade (DDI), onde, nas relações com parceiros e fornecedores, afere-se, mediante um questionário, informações relacionadas à sua reputação, idoneidade e às práticas que adotam no combate à corrupção. Ou seja: exige-se de seus fornecedores que também adotem as práticas de compliance.

A adoção de mecanismos de controles internos é importante, mas, isoladamente, também não são suficientes para evitar a ocorrência de ilícitos, pois o envolvimento dos partidos políticos com doadores e fornecedores inidôneos também pode gerar máculas jurídicas capazes de inviabilizar até mesmo o seu funcionamento e eventual dissolução.

Observou-se nas últimas majoritárias as compras milionárias realizadas junto a empresas fantasmas, em nítida burla à legislação eleitoral, posto que as supostas aquisições, na verdade, fictícias, serviram para propiciar e acobertar gastos ilícitos com despesas outras que não aquelas que quiseram aparentar como legítimas nas prestações de contas ou mesmo para enriquecer políticos corruptos, muitos deles já condenados criminalmente. Se se quisesse tratar o partido como entidade proba, seus dirigentes teriam adotado as práticas de compliance e jamais se permitiriam as aquisições fictícias, onde se dissipou o dinheiro do contribuinte brasileiro.

As práticas de compliance não se restringem também aos aspectos financeiros. Devem-se adotar mecanismos que efetivamente façam valer as regras e regulamentos eleitorais, de modo a garantir a efetiva participação dos afiliados nas eleições, a exemplo da observância obrigatória do percentual das quotas de gênero quando dos registros de candidaturas. A prévia realização de uma verdadeira triagem dos candidatos dos gêneros masculino e feminino acerca do elemento volitivo dos mesmos de estarem nessa condição; a criação de regras de participação mínima nos atos partidários como condição de permanecerem agremiados, por exemplo, evitariam as candidaturas fictícias, que hoje são recorrentemente objeto de questionamentos judiciais mesmo após o deferimento do DRAP.

Nesse sentido, o TSE deu grande contribuição para a observância dessa regra nas eleições vindouras ao responder positivamente à Consulta nº 0600252-18.2018.6.00.0000, formulada por diversas Senadoras e Deputadas Federais sobre a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, o denominado Fundo Eleitoral, bem como sobre a distribuição do tempo de propaganda, e concluir, ainda que sem caráter vinculante, que a distribuição dos recursos oriundos do referido fundo deverá ser proporcional ao percentual de cada gênero, assim como a distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita.

Com certeza, a Justiça Eleitoral cobrará dos partidos no pleito vindouro que observem o que restou decidido na referida Consulta e aqueles deverão estar preparados, mediante a adoção de rotinas administrativas, para que se evite qualquer tentativa de burla, posto que ela redundará em funestas consequências para os candidatos, ainda que com os registros já deferidos ou eleitos. A lei, agora, teve interpretação teleológica conclusiva, ou, em outras palavras, objetivou-se.

As afiliadas, com certeza, exigirão um maior controle na arrecadação e repasse do percentual para as suas campanhas. Da mesma forma, não serão olvidadas das propagandas eleitorais.

 

2.2 O compliance e a segurança jurídica

A adoção das práticas de compliance tem reflexos benéficos e diretos na seara da segurança jurídica das eleições.

As agremiações partidárias devem se organizar, assim como se organizam as pessoas jurídicas de direito privado probas, e adotar as práticas anticorrupção, antifraude, de fiscalização de seus dirigentes, de triagem de seus fornecedores, de seus doadores, de aferição da legalidade dos atos partidários, do cumprimento de seus estatutos, da participação feminina, do repasse devido às candidaturas desse gênero, etc., o que somente é possível mediante o estabelecimento de rotinas próprias do denominado compliance.

Não se pode mais admitir que os pleitos eleitorais sejam dirimidos nos tribunais na proporção que hoje se observa; que suas decisões se sobreponham à vontade popular com tamanho vulto. Essa situação tem sua gênese nos partidos políticos e nas más-práticas de gestão por parte de seus dirigentes ou subordinados mais exponenciais. Deve-se entender que partido não tem dono, mas é apenas um instrumento de representatividade colocado à disposição da cidadania.

Partido político recebe dinheiro do contribuinte, razão pela qual deve observar, primeiramente, as regras do artigo 37 da Constituição da República [Planalto], e, como são instituições de grande porte e capilaridade nacional, devem contar com mecanismos que lhes permita uma gerência proba.

A insegurança jurídica quanto ao resultado do pleito gera danos nefastos não só à cidadania, mas ao desenvolvimento planejado das políticas públicas, à economia, ao erário, enfim, à própria democracia, posto que as eleições foram idealizadas para serem decididas pelos votos depositados nas urnas, e não com fulcro nas teses jurídicas esposadas nas petições dirigidas aos tribunais eleitorais.

 

3 Conclusão

Não se pode mais admitir as más-práticas administrativas e o amadorismo na condução das agremiações partidárias.

Pela natureza jurídica que ostentam e, principalmente, por receberem recursos públicos, oriundos dos suados impostos dos cidadãos brasileiros, devem zelar pela probidade de suas gestões.

Enfim, os partidos políticos devem ser protagonistas do aprimoramento da democracia, e não semeadores da insegurança jurídica.

Nota 01 45, advogado, juiz membro do Tribunal Regional do Estado de Goiás, Juiz Gestor de Metas do TRE/GO junto Conselho Nacional de Justiça - CNJ, Membro do Conselho Editorial da Revista Verba Legis.

Nota 02 Constituição Federal, artigo 17, § 1º.

Nota 03 <https://www.kpmg.com/BR/PT/Estudos_Analises/artigosepublicacoes/Documents/Advisory/pesquisa-compliance-no-brasil.pdf>.

Nota 04 Pierpaolo Cruz Bottini, O que é compliance no âmbito do Direito Penal?, Conjur, disponível em <https://www.conjur.com.br/2013-abr-30/direito-defesa-afinal-criminal-compliance> Acesso em: .