Verba Legis 2018

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O abuso do poder religioso e sua influência no processo eleitoral

por Julio Cesar Meirelles

 

A Constituição Federal de 1988 [Planalto] prevê o Brasil como um país laico, no qual a liberdade religiosa é assegurada a qualquer cidadão, que tem o direito de escolher e professar livremente sua crença e féNota 01. A Lei Maior, notadamente a norma insculpida no artigo 19, inciso I [Planalto], impede expressamente a ingerência do Estado sobre o temaNota 02. Pode-se dizer que o Constituinte Originário acertadamente fixou distância entre o Estado e a religião.

Nos últimos anos, entretanto, a religião tem ocupado posição de destaque na política brasileira, contando até mesmo com bancada própria no Congresso Nacional.

Com aproximação entre a religião e a política, passou a ocorrer no processo eleitoral a utilização, por candidatos, de templos religiosos em eventos e cultos promovidos pela congregação. Tais eventos se caracterizam pela manifestação efusiva do líder religioso em relação a determinado candidato, seja o elogiando ou o criticando, de modo que a finalidade estritamente religiosa da igreja passou a ser desvirtuada, ganhando destaque, muitas vezes desarrazoado, na disputa eleitoral.

Em alguns casos, candidatos apoiados por líderes religiosos passaram a usufruir eleitoralmente da estrutura das igrejas, seja sob o ponto de vista físico, o próprio templo, ou do ponto de vista metafísico, através da figura poderosa do líder religioso perante os fiéis, alguns subconscientemente subordinados a ele, fato que tem causado demasiado desequilíbrio na disputa eleitoral, pois, induvidosamente, retira a liberdade de escolha do eleitor.

Isso porque a religião sempre teve influência direta na vida da pessoa, modificando a forma de pensar, agir e até mesmo se portar no convívio social. O líder religioso é, para alguns fiéis, o homem designado por Deus para transmitir os seus ensinamentos. Trata-se, portanto, de um poder metafísico, imaterial, que às vezes foge ao controle do homem.

Nessa esteira, surgiu para o Direito Eleitoral um novo instituto jurídico: o abuso do poder religioso. Juntamente com essa nova figura jurídica vieram vários questionamentos, dentre eles, a possibilidade ou não de o candidato ser condenado em sede de AIJE  por essa forma de abuso.

A aplicação ou o enquadramento do abuso do poder religioso como fundamento para uma condenação na seara eleitoral não é tarefa fácil. De um lado temos a liberdade religiosa, a liberdade de expressão e livre consciência, todos preceitos insculpidos no texto constitucional. Do outro, não menos importante, está a soberania popular, pilar da existência do Estado Democrático de Direito que garante ao cidadão todos os direitos acima citados.

O primeiro impasse sobre o tema recai na análise e proteção do direito fundamental de liberdade de expressão. Um questionamento se faz oportuno: o líder religioso, ao criticar ou exaltar as qualidades pessoais de determinado candidato, não está fazendo valer seu direito fundamental de livre manifestação de opinião e expressão?

Paulo Gustavo Gonet Branco leciona que “A liberdade de expressão é um dos mais relevantes e preciosos direitos fundamentais, correspondendo a uma das mais antigas reivindicações dos homens de todos os temposNota 03.

Mais adiante ressalta o citado jurista:

A garantia da liberdade de expressão tutela, ao menos enquanto não houver colisão com outros direitos fundamentais e com outros valores constitucionalmente estabelecidos, toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor, ou não — até porque “diferenciar entre opiniões valiosas ou sem valor é uma contradição num Estado baseado na concepção de uma democracia livre e pluralistaNota 04.

A liberdade de expressão, portanto, garante ao cidadão, independentemente da sua posição ou condição social, a possibilidade de opinar sobre qualquer tema. Ao cidadão é dado o direito de se manifestar livremente, conforme sua convicção.

Nessa esteira, o líder religioso, ao se manifestar favorável ou desfavoravelmente sobre determinado candidato ou candidatura durante um culto, estaria apenas exercitando o seu direito fundamental estabelecido no artigo 5º, inciso IV, Lei MaiorNota 05. Contudo, a própria lição acima transcrita revela que, assim como todos os direitos fundamentais, a liberdade de expressão tem restrições, principalmente quando colidente com outros direitos fundamentais, como pode ocorrer caso o líder religioso imponha, mesmo que subliminarmente, dado o seu poder metafísico em relação ao fiel, a sua vontade, mitigando, desse modo, a liberdade de escolha daquele.

Assim, tem-se instaurado o conflito de direitos fundamentais, ambos inerentes à liberdade, o primeiro consistente na liberdade de se expressar; o segundo, ligado à liberdade de exercer o voto, preceito norteador do Estado Democrático de Direito.

A soberania popular é exercida em sua plenitude quando o cidadão/eleitor tem a irrestrita liberdade para tomar suas decisões quando da escolha dos seus representantes. Nessa linha, inegável que a liberdade no exercício do voto se sobrepõe à liberdade de expressão, por ser pilar da existência do próprio Estado Democrático de Direito.

O abuso do poder restará configurado quando o líder religioso, se valendo da força da sua persuasão, inicia um processo de imposição da sua opinião visando impulsionar ou desvalorizar determinada candidatura.

José Jairo Gomes leciona que haverá abuso “(…) sempre que, em um contexto amplo, o poder — não importa sua origem ou natureza — for manejado com vistas à concretização de ações irrazoáveis, anormais, inusitadas ou mesmo injustificáveis diante das circunstâncias que se apresentarem e, sobretudo, ante os princípios e valores agasalhados no ordenamento jurídicoNota 06.

Nesse contexto, o abuso de poder religioso é passível de reprimenda, uma vez que tal espécie se caracteriza pela utilização desmedida de instrumentos capazes de modificar o estado mental da pessoa, suprimindo a liberdade de escolha do eleitor.

Ocorre que, diferentemente do que se verifica com as demais espécies de abuso do poder, o abuso do poder religioso é um instituto criado pela doutrina e jurisprudência recentes, mas, que ainda vem sendo objeto de controvérsias em calorosos debates nos tribunais pátrios, ante a ausência de previsão legal no ordenamento jurídico eleitoral.

Diante da inegável e crescente influência da religião nas eleições, partidos, candidatos, coligações e o próprio MPE passaram a reclamar judicialmente a apuração de eventuais irregularidades ocorridas em cultos e eventos religiosos, que em alguns episódios ganharam contornos eleitorais, principalmente durante as eleições.

O abuso do poder religioso foi debatido no Tribunal Superior Eleitoral quando do julgamento do RO nº 2.653, de relatoria do ministro Henrique Neves. Na ocasião, o ministro apresentou posição importante acerca da atuação das congregações religiosas durante o processo eleitoral, sempre defendendo a liberdade de crença, direito fundamental estabelecido no texto constitucionalNota 07:

Em conclusão, ainda que não haja como reconhecer a existência de abuso do poder religioso — cuja análise deve ser sempre realizada da forma mais isenta possível, sem contaminação de convicção espiritual própria, sob pena de se caminhar para a intolerância religiosa —, a liberdade religiosa e a separação entre o Estado e a igreja não autorizam a admissão de atos que atentem contra a normalidade e legitimidade das disputas eleitorais e que quebrem a igualdade de oportunidades entre os candidatos. Os excessos e ilícitos cometidos podem ser aferidos pela Justiça Eleitoral, seja no exercício do poder de polícia, seja nos feitos judiciais, desde a aplicação de simples multas até a caracterização de abuso do poder econômico, uso indevido dos meios e veículos de comunicação social ou apuração de desrespeito às regras financeiras das campanhas eleitorais. Nessas situações, conforme a gravidade verificada, o registro ou o diploma dos candidatos beneficiados podem ser atingidos e a inelegibilidade pode ser cominada (…)Nota 08.

Verifica-se que o ministro relator ressaltou a possiblidade de se analisar e punir os excessos praticados em eventos religiosos que ferem os princípios da normalidade e legitimidade do processo democrático de escolha, esses igualmente estampados na Carta Política de 1988.

Assentou-se no voto que o abuso do poder religioso, em razão da ausência de previsão legal, deve ser analisado sob o aspecto da prática do abuso de poder econômico e/ou político, espécies expressamente previstas no ordenamento jurídico brasileiro.

O Tribunal Regional Eleitoral do Estado de São Paulo também já se manifestou sobre o tema em análise:

O abuso do poder religioso não encontra regramento expresso no ordenamento jurídico vigente. Ele pode ser identificado no atrelamento de pedido de votos a crenças e práticas religiosas, com influência indevida na vontade do eleitor. (…) Com efeito, o que se intenta coibir com o abuso do poder religioso é o desvirtuamento do uso da fé em favor de dada candidaturaNota 09.

A discussão não deve gravitar sob o aspecto da liberdade religiosa ou de crença prescrita no texto constitucionalNota 10. O debate deve ser fincado na análise do conflito entre a liberdade de expressão, principalmente por parte do líder religioso, e a liberdade do exercício do voto.

Nessa linha de raciocínio, o Tribunal Superior Eleitoral pontou:

É absolutamente e constitucionalmente assegurado que os sacerdotes e pregadores enfrentem em seus discursos, nas suas homilias, sermões, preleções ou reflexões os temas políticos que afligem a sociedade. E possam livremente adotar posição sobre esses problemas e expor suas opiniões e conselhos a respeito do tema. Por outro lado, nada impede que os candidatos abracem a defesa de causas religiosasNota 11.

O abuso do poder sempre está ligado a uma atividade desproporcional praticada por determinado candidato ou em seu benefício com propósito de retirar a liberdade do eleitor, quebrando a higidez do processo eleitoral.

A jurisprudência ainda é vacilante no que diz respeito ao reconhecimento do abuso do poder religioso. Ainda não fora colocado em debate o tema propriamente dito, mas, sim, o atrelamento do poder religioso com as demais espécies de abuso, principalmente o abuso do poder econômico.

As cortes eleitorais têm analisado apenas casos em que a estrutura religiosa foi colocada à disposição de determinada candidatura, e não a maciça pregação e imposição do líder religioso sobre os fiéis, até porque, demonstrar e comprovar o abuso sob esta perspectiva não é tarefa fácil.

Isso porque, não se pode perder de vista a virtude na adoração espontânea e livre do fiel em relação ao seu líder espiritual. O fiel, no seu íntimo, e dentro do direito a liberdade de consciência, pode se sentir convicto de que o candidato, líder religioso ou apoiado por este, é o mais apto para o exercício do mandato.

Não só o Poder Judiciário deve debater o tema. O Poder Legislativo precisa, com certa urgência, se atentar para a dinâmica inerente ao processo eleitoral e colocar em pauta discussão acerca do abuso do poder religioso. Conforme ressaltado, os tribunais ainda esbarram na omissão legislativa acerca do tema.

Tão importante quanto se discutir uma reforma política voltada para o modelo, número de partidos, financiamento de campanha, formas de representação, é a previsão de novos institutos jurídicos que surgem a cada processo eleitoral e que se revelam extremamente daninhos ao sistema político.

Não há como negar o aumento da participação direta de representantes religiosos na política brasileira, o que fortalece o debate e a representatividade inerente ao Estado Democrático de Direito.

Contudo, gravita em torno da religião um poder imaterial, que está estritamente ligado à crença das pessoas em Deus. Nesse contexto, em muitos casos, os fiéis tendem a seguir tudo aquilo que o líder prega, fala ou determina que seja feito. Na visão do seguidor religioso, tudo que for expressamente determinado pelo líder espiritual é a vontade de Deus, atingindo, assim, mesmo que subliminarmente, o estado mental do cidadão.

É justamente sob esse prisma que deve ser discutido o abuso do poder religioso. Trata-se do conflito de dois princípios constitucionais. De um lado a liberdade de expressão, ou seja, a livre manifestação do pensamento e da opinião, em contraponto com a liberdade do cidadão no momento de escolher seus representantes, ambos indispensáveis à democracia.

Assim como todos os direitos fundamentais, a liberdade de expressão não é absoluta. A livre manifestação do pensamento, portanto, não pode afrontar os demais direitos fundamentais garantidos ao cidadão.

A manifestação política ou expressão de opinião sobre determinado candidato não se confunde com a pregação em favor de uma determinada candidatura. Nesse momento, a fé ou a crença deixam o campo da metafísica e migram para o debate político, modificando o estado mental da pessoa, que em alguns casos, passa a crer que o candidato do líder religioso, ou o próprio, é o mais apto para o exercício de determinado cargo.

Assim, o líder religioso tem o poder de influenciar diretamente na liberdade do eleitor, seguidor fiel aos seus ensinamentos, quebrando, assim, quando verificado que aquele se valeu da sua posição para se beneficiar ou beneficiar eleitoralmente terceiro, os princípios basilares ao Estado Democrático de Direito, restando caracterizado o abuso do poder religioso.

Ocorre que em razão da ausência de expressa previsão legal, lamentavelmente o abuso do poder religioso ainda se manterá no debate atrelado às demais espécies de abuso, o que de certa forma representa prejuízo na evolução da discussão acerca de tema que se apresenta tão importante a cada pleito eleitoral.

 

Referências

Nota 01 MENDES, Gilmar Ferreira: Curso de direito constitucional/Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco, 9. ed., rev. E atual., São Paulo, Saraiva, , p. 309.

Nota 02Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

Nota 03 MENDES, Gilmar Ferreira: Curso de direito constitucional/Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco, 9. ed., rev. E atual., São Paulo, Saraiva, , p. 271.

Nota 04 MENDES, Gilmar Ferreira: Curso de direito constitucional/Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco, 9. ed., rev. E atual., São Paulo, Saraiva, , p. 272.

Nota 05Art. 5º. (…) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

Nota 06 GOMES, José Jairo, Curso de Direito Eleitoral, 12 ed., , p. 310–311.

Nota 07(…) VII - Configura o abuso do uso dos meios de comunicação social a hipótese de evento previamente denominado de fim religioso, mas em que a pregação se fez com apelo a pedido de votos para candidatos a cargos eletivos que se encontravam presentes e participaram ativamente da encenação de fé”. (Apud. BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral, RO nº 2.653/RO, Rel. Min. Henrique Neves, publicado em .

Nota 08 BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral, RO nº 2.653/RO, Rel. Min. Henrique Neves, publicado em .

Nota 09 SÃO PAULO, Tribunal Regional Eleitoral: RE nº 78.279, Rel. Marli Marques Ferreira, publicado no dia .

Nota 10Art. 5º. (…) VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”.

Nota 11 BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral, RO nº 2.653/RO, Rel. Min. Henrique Neves, publicado em .