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Revista Jurídica Verba Legis

Verba Legis 2015

sumário

Artigos

A judicialização das políticas públicas de saúde: o papel do Juiz-Estado na efetivação do direito fundamental social à saúde

por Thárik Uchôa Luz nota 01

 

 

1. Da evolução histórica da atuação do Poder Judiciário

 

O presente artigo procura demonstrar a imprescindibilidade da atuação jurisdicional no fomento de políticas públicas de saúde. Por sua vez, o processo cronológico da atuação jurídica passa por uma evolução à moda darwiniana, onde há uma seleção das necessidades sociais demandada por cada época. O Judiciário como parte integrante do Poder estatal passou pelo processo de transição e seleção do Estado Liberal ao Estado Social.

A primeira análise realizada é a fase do Estado Liberal, que surge como o Estado de Direito. Como leciona Bonavides (2011, p. 41), "esse primeiro Estado de Direito, com seu formalismo supremo, que despira o Estado de substantividade ou conteúdo, sem força criadora, reflete a pugna da liberdade contra o despotismo na área continental europeia".

Na esteira de Piçarra (1989, p. 143-144), tal ideário tem como premissa essencial a antinomia radical entre o indivíduo, com a sua liberdade natural, e a sociedade, que lhe impõe obrigações e o coage com o seu poder. Tal antinomia, bem como a busca de sua solução, "é que virão a determinar a construção de novos modelos de Estado e novas formas de poder político".

O Estado Social, como segunda análise, é resultado de uma transformação do Estado Liberal clássico. O Estado, agora dito Social, não deixou de ser um Estado de Direito, mas incorporou os direitos sociais para além dos direitos civis — como os direitos de liberdade e propriedade até então resguardados, isso conforme artigo de Balhe (2012) nota 02.

Esse modelo de Estado nasce em meio à contradição histórica, pois se afirma em três experiências políticas e institucionais diferentes (dissonantes ou até mesmo opostas) — a reconstrução da Alemanha após a Primeira Guerra, a Revolução Russa de 1917 e a Revolução Mexicana e suas consequências — e tem como resultado direto a produção de três documentos também diversos entre si, mas complementares — a Constituição Mexicana de 1917, a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, na Rússia revolucionária (socialista), de 1918, e a Constituição de Weimar de 1919.

 

 

1.1. Do Poder Judiciário Legalista

 

O Poder Judiciário legalista insere-se na fase do Estado Liberal. Esta fase inicia-se após a Revolução Francesa (1789). Dizia-se, àquela época que os juízes deveriam ser bouches de la loi (boca da lei) no sentido de que deveriam apenas aplicar, da forma mais mecânica possível as leis editadas pelo Legislativo.

Justificou-se esse cerceamento ao Judiciário com o fato dos juízes franceses terem extrapolado suas atribuições, assumindo atitudes questionadoras frente ao Rei Luís XVI. Os juízes passaram a ser considerados "perigosos" tanto pelos monarquistas quanto pelos revolucionários (republicanos), conforme atestam estudos de Marques nota 03.

Os juízes ora decidiam a favor de particulares contrariando o poder público, ora decidiam em prol do poder público contrariando particulares, a depender de seus interesses pessoais. Assim, isso contribuiu para que a Revolução Francesa punisse muitos juízes e procurasse adaptar o Judiciário aos princípios republicanos e ao sistema de separação de Poderes (DALLARI, 2007).

O art. 3º do capítulo II da Constituição Francesa de 1791 (a primeira Constituição escrita da França) demonstra a desconfiança da atuação jurisdicional no Estado Liberal, onde se lê: "Não existe na França autoridade superior à da Lei. O Rei reina por ela e não pode exigir a obediência se não em nome da Lei."

Vê-se que o Judiciário que era, de algum modo, nulo, e os juízes da nação que não eram senão mais do que a boca que pronunciava as palavras da lei, restaram equiparados a seres inanimados que da lei não podiam moderar nem a força e nem o rigor (MONTESQUIEU, 2002).

Entretanto, o que os primeiros liberais queriam preservar era a lei natural numa concepção racional, entendida como "a relação necessária que deriva da natureza das coisas". Contudo, o que prevaleceu após a Revolução Francesa e mais contemporaneamente na América Latina foi o legalismo formal, agravado pela influência, ainda hoje muito forte, de Hans Kelsen (DALLARI, 2007, p.86).

A restrição do poder em relação aos órgãos do Estado era indispensável, em uma recém finda fase histórica na qual o despotismo pregara o poder absoluto e arbitrário (CANELLA, 2011).

O juiz tornou-se, então, "escravo da lei", excluindo-se o ideal de justiça e ética na magistratura. Resquício desse apego à lei está presente no Princípio da Legalidade adstrito à Administração Pública, onde o agente público, nesse caso o juiz, deve agir em conformidade com a previsão legal, nem além, nem aquém (CF, art. 37).

De seu turno, reforçando o dispositivo constituinte, dispõe o inciso I do parágrafo único do art. 2º da Lei nº 9.784/99: "A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da Lei e do Direito".

 

 

1.2. Do Poder Judiciário Ativista

 

Outrossim, com o formalismo da lei, deixando a maioria dos cidadãos às margens da materialidade possível de se alcançar justiça, a ordem liberal é posta em xeque com o surgimento de ideias socialistas, comunistas e anarquistas, que a um só tempo, "animam os movimentos coletivos de massa cada vez mais significativos e neles reforça com a luta pelos direitos coletivos e sociais" (CARVALHO NETTO, 1999, p.478).

Agora, exige-se que o juiz seja la bouche du droit, pois a hermenêutica jurídica estabelece métodos mais sofisticados como a análise teleológica, a sistêmica e a histórica, "capazes de emancipar o sentido da lei da vontade subjetiva do legislador na direção da vontade objetiva da própria lei, profundamente inserida nas diretrizes de materialização do direito que mesma prefigura, mergulhada na dinâmica das necessidades dos programas e tarefas sociais" (CARVALHO NETTO, 1999, p.481).

Segundo Streck (2007), após a Segunda Guerra Mundial, observa-se um Estado de Direito que tem preocupação com os direitos fundamentais e com a democracia - pilares do novo modelo de Direito Constitucional - proporcionando um grande avanço aos Textos Maiores, que, até então, eram voltados ao bem-estar de um Estado intervencionista, o Estado Social.

No Estado Social, havendo ampliação do caráter positivo do Governo, a função jurisdicional é chamada a exercer uma função proativa, de verificação de constitucionalidade, liberando-se do apertado condicionamento da estrita legalidade e da responsabilidade exclusivamente retrospectiva que ela impõe, obrigando-se a uma responsabilidade prospectiva (FERRAZ JÚNIOR, 1994).

Neste novo contexto, o Estado deve promover a igualdade substancial dos cidadãos, mediante a implementação material, e não meramente formal, dos bens da vida amparados pelos direitos fundamentais sociais, entre eles, o direito à saúde (CANELLA, 2011).

A Constituição de 1988 não deixa dúvidas quanto ao facere do Estado na figura do juiz, na efetivação de políticas públicas, em seu art. 2º, que dispõe "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário" [grifo nosso], combinado com o art. 3º, que trata dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil; dentre eles: construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais; e promover o bem de todos.

Demais disso, os juízes exercem atividade política em dois sentidos: por serem integrantes do aparato do poder do Estado, que é uma sociedade política, e por aplicarem normas de direito, que são necessariamente políticas (DALLARI, 2009).

Quem inaugura esse ativismo judicial são os Estados Unidos da América, em 1891, no caso Madison versus Marbury julgado pelo juiz Marshall, onde se concretiza a supremacia constitucional.

Foi afirmada a doutrina do amplo poder de controle judiciário sobre atos do Executivo e do Legislativo, através de interpretação das normas constitucionais, podendo o Judiciário declarar nulos atos dos demais Poderes julgados inconstitucionais (DALLARI, 2009).

No caso do Brasil, como em toda a América Latina, há ainda um apego exacerbado com o legalismo, mas que vem perdendo força. Vê-se, que a própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prescreve em seu art. 5º que "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum" abrindo espaço à interpretação da lei pelo julgador, em consonância com interesses públicos considerados da maior relevância.

O atual modelo de atuação jurídico brasileiro enquadra-se ao pós-positivismo, que segundo Barroso (2008, p. 4-5):

O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de ideias ricas e heterogêneas que procuram abrigo neste paradigma em construção incluem-se a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana.

O constitucionalista Silva (2009, p. 557), afirma que a jurisdição constitucional "emergiu historicamente como um instrumento de defesa da Constituição, não da Constituição considerada como um puro nome, mas da Constituição tida como expressão de valores sociais e políticos".

O juiz deve se ater não somente a lei, pois a lei pode ser injusta, o ideal a ser perseguido é o da justiça, sobretudo a de índole social.

Cita-se, por exemplo, como uso da lei injustamente a subordinação do Poder Judiciário brasileiro ao Poder Executivo no período ditadorial (1964-1985), ao aplicar os atos institucionais, claramente dissonantes à Constituição, com o intuito de legalizar e legimitar o regime militar. Dallari (2009, p. 101-102) entende quanto à aplicação desses atos normativos de cunho repressivo e ditadorial:

Embora não tenham sido muitos teóricos do direito e também juízes que jamais cederam e nunca deixaram de proclamar que, apesar de terem a aparência de lei e a garantia da força para sua aplicação, os atos institucionais e complementares e toda a legislação deles decorrente compunham uma falsa legalidade, irresistível naquelas circunstâncias, mas nem por isso merecedora de respeitosa acolhida e aplicação como se tais atos fossem partes de uma normalidade jurídica.

Segundo dispõe Sgarbi (2007, p. 738), "para aplicação do direito, a norma deve ser aplicável, (…) mas para que a norma seja ‘aplicada’, requerse seja ela ‘avaliada’", o que significa que também é tarefa do operador jurídico sopesar a norma, analisar a sua consonância com o texto constitucional e com os ditames da justiça social.

Para Ross (2003, p. 331), "a decisão é objetiva (justa em sentido objetivo) quando cabe dentro de princípios de interpretação ou valorações que são correntes na prática. É subjetiva (injusta em sentido objetivo) quando se afasta disso."

Portanto, na fase do Estado Social, o Poder Judiciário ativista não deve se ater à aplicação da letra fria da lei, mas deve aplicar a lei utilizando-se dos métodos interpretativos valorativos comumente aceitos, sempre tendo em vista os seus fins sociais e as exigências do bem comum, bem como o alcance da justiça material aplicada ao caso concreto.

 

 

2. Da Judicialização das políticas públicas de saúde

 

Refeito o caminho histórico do Juiz-Estado, de sua evolução de um simples "boca da lei" para um juiz, ativista, agente político cabe-nos adentrar o suporte do presente trabalho que são os Princípios norteadores do Direito à Saúde, logo norteadores das políticas públicas de saúde.

Nesse diapasão, é importante esboçar dois Princípios basilares do Direito à Saúde, que em demandas judiciais sempre aparecem, quais sejam, o Princípio do Mínimo Existencial e o Princípio da Reserva do Possível.

Comumente a Administração Pública como forma de justificar a impossibilidade de fornecer algum medicamento de alto custo ou procedimento cirúrgico de grande porte, contrapõe o princípio da reserva do possível e, de outro lado, defende-se o cidadão com base no mínimo existencial, ambos com raízes eminentemente germânicas.

Como se percebe no capítulo anterior, exige-se, atualmente, do Juiz-Estado, uma atuação judicante atrelada à conjectura do Estado Social de Direito.

E a esse Estado Social de Direito incumbe constitucionalmente zelar pela Saúde de seus cidadãos.

Como preleciona a Constituição Federal em seu artigo 196:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação.

Outrossim, o Direito à Saúde é um direito fundamental de segunda dimensão. Nas palavras de Cury, "o direito à saúde é o principal direito fundamental social encontrado na Lei Maior brasileira, diretamente ligado ao princípio maior que rege todo o ordenamento jurídico pátrio: o princípio da dignidade da pessoa humana - razão pela qual tal direito merece tratamento especial".

Assim, à Administração Pública compete elaborar e efetivar ações e planos políticos no sentido de efetivar os direitos fundamentais apresentados pela Constituição Federal. Esse conjunto de ações ou atividades é considerado políticas públicas (FREIRE JUNIOR, 2005).

Traz-se à baila outros conceitos de alguns doutrinadores do que seja políticas públicas para melhor compreensão do fenômeno concernente ao Direito à Saúde.

Segundo Bucci (2006, p. 39):

Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados — processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial — visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.

Por sua vez, comenta Canela quanto à atuação jurisdicional frente às políticas públicas (2010, p. 88-89):

Por política estatal - ou políticas públicas - entende- -se o conjunto de atividades do Estado tendentes a seus fins, de acordo com metas a serem atingidas. Trata-se de um conjunto de normas (Poder Legislativo), atos (Poder Executivo) e decisões (Poder Judiciário) que visam à realização dos fins primordiais do Estado. Como toda atividade política (políticas públicas) exercida pelo Legislativo e pelo Executivo deve compatibilizar-se com a Constituição, cabe ao Poder Judiciário analisar, em qualquer situação e desde que provocado, o que se convencionou chamar de "atos de governo" ou "questões políticas", sob o prisma do atendimento aos fins do Estado (art. 3º da CF), ou seja, em última análise à sua constitucionalidade.

Acrescenta o mesmo autor (2011, p. 89):

Diante dessa nova ordem, denominada de judicialização da política, […] contando com o juiz como co-autor das políticas públicas, fica claro que sempre que os demais poderes comprometerem a integridade e a eficácia dos fins do Estado - incluindo as dos direitos fundamentais, individuais ou coletivos - o Poder Judiciário deve atuar na sua função de controle.

No Brasil, a "política de Estado" ou política pública que se incumbe, vale ressaltar, de zelar pelo Direito à Saúde é o Sistema Único de Saúde (SUS) que consagra os princípios da Universalidade, Equidade e Integralidade da atenção à saúde, política esta que se propõe a garantir o acesso universal da população a bens e serviços que garantam sua saúde e bem-estar, de forma equitativa e integral.

Ademais, calcado no Princípio da Dignidade da pessoa humana, o direito à saúde não se resume apenas à ausência de doenças ou ao acesso a medicamentos, inclui direito a uma boa alimentação, em quantidade e qualidade suficientes, bom lazer, meio ambiente de qualidade, condições salubres de trabalho; a saúde não está restrita ao físico, mas também possui sua dimensão psicológica.

O Estado tem o dever de prestar ou fazer algo em prol da saúde dos administrados. Ocorre que as políticas públicas de saúde requerem alocação de recursos estatais e com a demora para a realização das políticas públicas ou a negligência da Administração Pública em prestar alguma assistência de Saúde, existem casos que não podem esperar pela atuação estatal, pela alocação de recursos ou pela burocracia no repasse de recursos.

E é exatamente nesse contexto que o Poder Judiciário acaba atuando, de modo a forçar a garantia do direito fundamental no caso concreto (FREIRE JUNIOR, 2005), obrigando juridicamente os atores sociais a promoverem a garantia dos direitos fundamentais elencados na Constituição Federal.

Portanto, fazendo o sopesamento entre o Princípio do Mínimo Existencial e o Princípio da Reserva do Possível o juiz deverá averiguar in concreto a necessidade ou não em impôr a Administração Pública cumprir com seu dever constitucionalmente estabelecido ao particular. Seu papel no Estado Social de Direito é fazer com que o Direito Fundamental Social à Saúde seja concretizado por meio de políticas públicas, zelando pelo cumprimento da Constituição Federal.

 

 

2.1. Da complementariedade do mínimo existencial e da reserva do possível

 

Tratar do Mínimo Existencial e da Reserva do Possível remete a dois aspectos atinentes ao Direito Administrativo, quais sejam o interesse público primário e o interesse público secundário.

A despeito desta perspectiva entre interesse público primário e secundário traz-se a lição do ilustre ministro do Supremo Tribunal Federal, Barroso (2007, p. 13-14):

O interesse público primário é a razão de ser do Estado, e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são os interesses de toda a sociedade. O interesse público secundário é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica - quer se trate da União, do Estado-membro, do Município ou de suas autarquias. Em ampla medida, pode ser identificado como interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas. (…) O interesse público secundário não é, obviamente, desimportante. Observe-se o exemplo do erário. Os recursos financeiros provêem os meios para realização do interesse primário, e não é possível prescindir deles. Sem recursos adequados, o Estado não tem capacidade de promover investimentos sociais nem de prestar de maneira adequada os serviços públicos que lhe tocam. Mas, naturalmente, em nenhuma hipótese será legítimo sacrificar o interesse público primário com o objetivo de satisfazer o secundário.

Vê-se que tanto a reserva do possível como o mínimo existencial coexistem com o objetivo de preservar o interesse público, seja na função positiva Estatal em tutelar o Direito à Saúde; seja para evitar o dispêndio de recursos financeiros desarrazoadamente.

Logo, contrapôr o mínimo existencial com a reserva do possível é originalmente teratológico, já que orbitam sobre o interesse público. O que deve haver entre tais princípios é sua harmonização e ponderação em um caso concreto de demanda judicial que vise, por exemplo, a concessão de um medicamento de alto custo ao cidadão.

 

 

3. Do Estado-Juiz, agente político

 

Não há como tratar de política pública e não refletir sobre a atuação jurisdicional nos processos designativos das políticas públicas de saúde. Os termos Estado-Juiz e agente político são essencias nessa análise.

Ora, o juiz é representante do Estado, o Judiciário, representa parcela do poder estatal.

Como proposto por Canela Junior (2010, p. 67), "o Poder é Uno, o que muda são suas formas de manifestação"; logo a harmonia das três esferas do Poder deve levar à concretização dos objetivos fundamentais da Constituição (art. 3º, CF).

A Carta Magna, em seu artigo art. 2º, prescreve que São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Deste modo, o Poder Judiciário é um dos tripés do Estado, mais do que legitimado pela Constituição para conferir efetividade ao Direito Fundamental social à saúde, quando provocado, dado o princípio da inafastabilidade da jurisdição.

O descrédito nos Poderes Executivo e Legislativo apresenta o Poder Judiciário como a terceira via, como a esperança para as injustiças perpetradas na seara da saúde.

Ultrapassada a fase clássica do juiz como "aplicador da lei", forma-se um Estado-Juiz apto não apenas a aplicar a lei, mas um agente político, cujas decisões não são decisões estritamente jurídicas, desatreladas do mundo fático; são decisões que geram efeitos sociológicos e contribuem para a concretização de um Estado Democrático de Direito.

Alguns doutrinadores, como Celso Antônio Bandeira de Mello, José dos Santos Carvalho Filho e Maria Sylvia Zanella di Pietro, afirmam que eles são servidores públicos. Já Hely Lopes Meirelles e o Supremo Tribunal Federal, conforme análise de sua jurisprudência, defendem a posição de que os juízes são agentes políticos.

O primeiro grupo (defensores de que os membros do Judiciário são servidores públicos) afirma que agente político é aquele que possui a titularidade de cargo estrutural à organização política do país, além de elaborarem estratégias políticas necessárias para que o Estado atinja os seus fins.

Portanto, são agentes políticos os membros do Poder Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos), seus auxiliares (Ministros de Estado e Secretários Municipais e Estaduais) e os membros do Poder Legislativo.

Já o segundo grupo estende a compreensão do conceito de agente político. Para ele, a referida classificação alberga os agentes que possuem "plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições com prerrogativas e responsabilidade próprias, estabelecidas na Constituição e em leis especiais". Portanto, os membros do Judiciário fazem parte dessa classificação.

Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2004, p. 61) filiando-se à segunda posição listam as características distintivas dos agentes políticos:

  1. sua competência é haurida da própria Constituição;
  2. não se sujeitam às regras comuns aplicáveis aos servidores públicos em geral;
  3. normalmente são investidos em seus cargos por meio de eleição, nomeação ou designação;
  4. não são hierarquizados (com exceção dos auxiliares imediatos dos Chefes dos Executivos), sujeitando-se, tão somente, às regras constitucionais.

Por todo o exposto, percebe-se que a atuação jurisdicional é uma atuação política que é fundamental e se presta bem na efetivação e fomento das políticas públicas de saúde.

Conclui-se, portanto, por sua formação técnico-científica e sua legitimação constitucional para atuar quando provocado, sobretudo, em razão da omissão dos Poderes Executivo e Legislativo, o Estado-Juiz é agente político capaz de efetivar as políticas públicas de saúde quando não asseguradas pela Administração Pública, nos casos de omissão da efetivação de tal Direito Fundamental ou quando há desvio de finalidade por parte do Poder Público.

 

 

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nota 01 Acadêmico de Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Estagiário da Assessoria do Tribunal Pleno do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás.

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