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Revista Jurídica Verba Legis

Verba Legis 2015

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Hermenêutica jurídica e o direito fundamental à decisão correta: por uma teoria da decisão judicial

por Paulo Roberto Machado nota 01

 

 

"O Direito está tão atrasado no Brasil que se fosse Medicina ainda estaríamos matando mulheres por não lavarmos as mãos na hora dos partos!"

A frase impactante é de Lênio Luiz Streck com sua autoridade científica de Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa e autor de inúmeras obras no campo do Direito, especialmente sobre hermenêutica jurídica, em que se destaca a trilogia: 1) HERMENÊUTICA JURÍDICA E(M) CRISE nota 02; 2) O QUE É ISTO - DECIDO CONFORME MINHA CONSCIÊNCIA? nota 03; e 3) VERDADE E CONSENSO - CONSTITUIÇÃO, HERMENÊUTICA E TEO RIAS DISCURSIVAS nota 04. Na terceira obra citada, e a partir de um rigoroso estudo anamnésico interdisciplinar, Lênio Streck empreita uma cruzada para resgatar o Direito brasileiro do atraso por ele diagnosticado, propondo uma Teoria da Decisão Judicial, cujos baldrames se fincam na superestrutura da plena compatibilização entre Democracia e Constitucionalismo, imbricando a teoria da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer com a teoria da coerência e integridade do Direito de Ronald Dworkin.

O presente artigo objetiva, modestíssimamente, cooperar para a máxima repercussão da tese de Lênio Streck, reconhecendo nela, para muito além de uma viragem teórica, um vigoroso movimento de cidadania na contemporaneidade. Nessa pauta, duas advertências devem ser feitas. Primeira, todas as assertivas desse texto a respeito de teses jurídicas específicas têm como fonte de pesquisa o já mencionado compêndio VERDADE E CONSENSO - CONSTITUIÇÃO, HERMENÊUTICA E TEORIAS DISCURSIVAS e também palestras do seu autor. Segunda advertência, todas as críticas aqui colocadas são de cunho puramente científico e acadêmico, não sendo dirigidas especificamente a qualquer instituição ou pessoa - parafraseando o Dr. Streck: só há de haver constrangimento epistemológico.

O Direito é um fenômeno complexo, não dá para ser simplificado, estudado em tirinhas ou discutido virtualmente em cento e quarenta caracteres nas redes socais, porque o risco que se corre com as simplificações é a desnaturação das coisas, como se percebe na eloquência desta anedota contada alhures pelo Professor Streck. Albert Einstein acabava de proferir uma palestra sobre a teoria da relatividade quando uma senhora da plateia perguntou se ele não poderia explicar de forma mais simples porque ela nada tinha entendido. Einstein assentiu e fez uma nova explanação buscando simplificar, ao término da qual a mesma senhora lhe pediu que simplificasse mais pois ela ainda não havia compreendido. Depois da terceira ou quarta simplificação da simplificação pacienciosamente apresentada pelo cientista, finalmente a senhora espectadora abriu um largo sorriso e disse efusiva "agora entendi!", ao que Einstein declarou taxativo "só que agora não é mais a teoria da relatividade (…)". Então, para debelar tal risco quanto à tese jurídica que aqui se ventila extremamente sintetizada, é altamente recomendável ao menos a leitura das seiscentas e sessenta páginas do VERDADE E CONSENSO - CONSTITUIÇÃO, HERMENÊUTICA E TEORIAS DISCURSIVAS, que é uma espécie de ‘laboratório’ dessa temática.

Sabe-se que o termo hermenêutica deriva de Hermes, um semideus da mitologia grega com o poder de intermediar para os mortais aquilo que os deuses diziam. Entretanto, não se podia controlar ou aferir o que Hermes dizia que os deuses diziam, daí ele ter ficado tão poderoso. A metáfora do mito de Hermes serve bem à compreensão da imprescindibilidade de se construir mecanismos que possibilitem controlar a jurisdição no Estado Democrático de Direito fundado em uma Constituição.

Na metafísica clássica, o sentido das coisas (objeto) estava numa espécie de essência ontológica - uma mesa era uma mesa porque possuía uma essência comum a todas as mesas, um tipo de ‘mito do dado’ em Aristóteles. Na metafísica moderna o sentido das coisas estava na vontade do sujeito da razão (filosofia da consciência), um sujeito solipsista, que basta a si mesmo, emblemado na célebre expressão cogito ergo sum (penso logo existo) dita por René Descartes - uma mesa era uma mesa a partir de uma afirmação categórica nesse sentido. Em um terceiro estágio, o sentido das coisas passou a ser atribuído pela linguagem, mediante o compartilhamento de um a priori talhado no "chão linguístico" da tradição, de modo que não se pode interpretar algo corretamente sem, antes, compreender o (seu) contexto - a notícia, por exemplo, do desfazimento da ‘Mesa do Senado’ pode ser entendida por um marceneiro iletrado como a desmontagem do móvel (mesa) ao qual se assentam os senadores durante as sessões.

Na têmpera da metafísica moderna, em pleno século XIX, dá-se a gênese do positivismo jurídico, uma ideologia formulada para aplicação do Direito na qual se destacam três matrizes simultaneamente. O exegetismo francês colando texto e norma (um Direito feito pelo legislador); ou seja, a ‘letra da lei’ trazia (ou pretendia trazer) em si, antecipadamente, todas as respostas aos conflitos individuais, o que não permitia ao juiz fazer motivação de validade, só de faticidade, limitando sua atuação ao velho silogismo, aplicando sempre a literalidade da regra legal por subsunção ou dedução, donde se cunhou pejorativos como "legalismo" e "juiz boca da lei". No pandectismo alemão, brotou a jurisprudência dos conceitos (um Direito feito por professores aristocratas). E na Common Law inglesa, a jurisprudência analítica (um Direito feito por juízes da instância superior).

O traço comum a essas três matrizes do clássico positivismo foi um rigorismo hermético a discussões relativas à legitimidade, com o que apartava Direito e Moral, e acabou oprimindo de tal modo a comunidade jurídica que, para cada uma delas, se desenvolveu uma antítese no curso das tensões que se seguiram nos vários setores da sociedade, marcadamente na aurora do século XX.

Na França, surgiu a escola do Direito livre (livre da lei). Na Alemanha, a jurisprudência dos interesses (ponderação) e, depois da segunda guerra, a jurisprudência dos valores. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, o realismo jurídico. São doutrinas axiologistas, empenhadas na descolagem entre texto e norma, buscando suplantar a razão (o positivo) pela vontade. O juiz, que antes não tinha poder algum, passou a poder tudo. Saltou-se, pois, da extrema racionalidade do positivismo original ao extremo subjetivismo - abre-se um parêntese para assinalar que a Hermenêutica vem depois como uma via que se interpõe a estes dois extremos.

Nesse rescaldo, erigiu-se o positivismo normativista (ou pós-positivismo para alguns doutrinadores), do qual Hans Kelsen é o maior expoente por ter sido pioneiro em separar o Direito da Teoria (pura) do Direito. Como era um pessimista moral, Kelsen relativizava a moral, professando a existência de vários sistemas morais, os quais variariam em função do tempo e lugar de origem. Daí sua convicção pela impossibilidade de se tratar cientificamente a casuística do mundo prático, raciocínio que encavou na sua Teoria Pura do Direito um abrigo à discricionariedade dos juízes, geratriz do ‘livre convencimento’ judicial.

O pensamento kelseniano associava-se à corrente que colocava o juiz funcionando como o porta-voz progressista dos sentimentos jurídicos do povo, vertente que pavimentou a institucionalização do ‘pragmatismo judicial’, sobre o qual se fundava a Escola do Direito Livre (da lei) de que derivou a Doutrina Instrumentalista do Direito, linhagem a que pertenciam renomados como Liebman, Couture, Carnelutti e Chiovenda, destacados patronos da Escola Instrumentalista do Processo que se arraigou no Brasil e sob cujas inspirações foi arquitetado o Código de Processo Civil sancionado em 11 de janeiro de 1973 - basta a simples leitura da exposição de motivos subscrita por Alfredo Buzaid. Some-se a isto a asfixia do meio jurídico provocada pelo regime de exceção que se instalou em 1964.

O instrumentalismo fez do Direito um tipo de consultor de moda, como se fosse uma Glória Kalil para assuntos jurídicos, mais ocupado em desenhar figurinos de ‘dever ser’, porém, com pouca ou nenhuma carga de normatividade.

A semente daninha desse contexto encontrou terreno fértil na ‘terra da jabuticaba’, onde foi semeada com três importações equivocadas: a "Jurisprudência dos Valores", a "ponderação alexyana" e o "ativismo norte-americano".

A Jurisprudência dos Valores foi uma válvula de escape do tribunal alemão para decidir fora do extremo rigor do sistema legiferante desprovido de participação popular por volta de 1949.

Sobre a ponderação é preciso, antes, ressaltar que para Robert Alexy os princípios são ‘mandados de otimização’, e sua teoria foi desenvolvida exatamente para conferir "racionalidade" ao sopesamento de valores como instrumento de contenção à Jurisprudência dos Valores. A ponderação de Alexy consiste em um método bastante complexo pelo qual se chega a uma regra para solucionar a colisão de princípios. Portanto, esta regra nada tem a haver com ‘escolher’ a prevalência ocasional de um princípio sobre outro. A propósito, o Professor Lênio revela que foram analisadas mais de uma centena de decisões do Supremo Tribunal Federal empregando a ponderação de princípios e nenhumas delas aplicou corretamente a regra alexyana.

O ativismo judicial foi copiado dos Estados Unidos sob uma miopia do liberalismo econômico, dando a falsa ideia de um ‘sentimento constitucional’ propulsor de desenvolvimento pelas mãos do Poder Judiciário, equívoco que se desfaz com a mera conferência do histórico de decisões da Suprema Corte daquele país, quando se constatará que foi tudo uma questão de placar decorrente de uma ou outra composição do colegiado.

Essa "Babel" no Direito deu causa a outra grave situação no Brasil, denunciada pelo Dr. Lênio por "pan-principiologismo", um tipo de carnavalização em que, a cada encruzilhada jurídica, cria-se um princípio. Ele catalogou dezenas de princípios totalmente desprovidos de normatividade, a exemplo do princípio da ‘cooperação processual’ - e indaga: o que poderia acontecer com a parte que não queira cooperar?

Eis o DNA do ‘decisionismo’ judicial que proliferou no Brasil, levando o Poder Judiciário a um protagonismo sedutor que, em verdade, fragiliza a democracia.

Incompreensões desse jaez dão margem a equívocas exclamações do tipo "a beleza do Direito é que ele admite diversas respostas/conclusões". Sob o vetor das teorias de Gadamer e de Dworkin a palavra beleza na dita oração é sinônima de pânico, insegurança jurídica (e psicológica), angústia, caos; enfim, todas as acepções que em um sistema democrático e constitucional se correlacionem com o substantivo ‘arbitrariedade’.

A partir do segundo pós-guerra todo o chamado mundo civilizado reconheceu que o Direito havia falhado exatamente porque fora incapaz de evitar holocaustos. Então, o Direito renasce com uma moral co-originária, munido de autonomia para que não mais seja corrigido pela moral, pela política, pela economia, pela religião, etc - bem verdade que continue o Direito a se nutrir de todas elas, mas jamais ser retificado por elas. Eclode sintomática uma usina constitucionalista capitaneada por Luigi Ferrajoli (constituição normativa), Gomes Canotilho (constituição dirigente) e Konrad Hesse (força normativa da constituição) trazendo novos paradigmas, como ‘cláusulas pétreas’, para proclamar que "democracia se faz no Direito e pelo Direito".

Portanto, na democracia constitucional, juiz decide, não faz escolhas. Ninguém ingressa em juízo com o intuito de saber qual é a opinião pessoal do juiz sobre determinada questão ou se ele acha justa ou injusta uma lei. O jurisdicionado não pode ficar a mercê de uma justiça salomônica, dependente da criatividade ou benevolência do magistrado. Neste aspecto, o Dr. Streck convida à leitura da obra de Ernst Kantorowicz "Os Dois Corpos do Rei", para demonstrar analogicamente que o juiz, assim como o rei, assume um papel social que não pode ser determinado por suas idiossincrasias, porquanto o juiz não detém poder político, mas, sim, responsabilidade política, o que o obriga a prestar contas sobre suas decisões; seria a fundamentação da fundamentação.

A Constituição de 1988 é o novo paradigma. O momento de se discutir valores morais é na feitura da lei durante o processo legislativo operado pelos representantes eleitos por voto direto. Depois de pronta uma lei constitucionalmente produzida, cabe ao Judiciário cumprir a legalidade constitucional, isto é, atuar com a ‘vontade de constituição’ doutrinada por Konrad Hesse nota 05.

Urge a criação de uma nova teoria da norma para afirmar que os princípios são deontológicos e não meros argumentos retóricos.

Igualmente, precisa-se de uma nova teoria das fontes. Atualmente é mais fácil se cumprir uma portaria do que uma lei (sentido estrito) ou mesmo a Constituição Federal. No âmbito do Direito Eleitoral, cite-se exemplificativamente a Resolução nº 23.398, de 17 de dezembro de 2013, cujo art. 34 fixou prazo recursal de 3 (três) dias inclusive para as representações fundadas nos artigos 23, 75 e 77 da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, no que a resolução confrontou a própria Lei nº 9.504, que prevê o prazo de 24 (vinte e quatro) horas no §8º do art. 96. E houve decisões admitindo recursos absolutamente intempestivos, porque aplicaram o prazo da resolução em detrimento do prazo previsto na Lei 9.504, cuja constitucionalidade não está em xeque.

Lastreia-se na essência desses aportes aqui pincelados a teoria da decisão proposta por Lênio Streck, que sustenta a existência de "um direito fundamental à obtenção de respostas corretas (adequadas à Constitução)".

Muito oportunamente devem ser registrados pelo menos dois resultados concretos da Teoria da Decisão pela dinâmica do seu autor. É que duas emendas encaminhadas pelo Dr. Lênio Streck foram acolhidas no então projeto do novo Código de Processo Civil, sancionado dia 16 de março de 2015. A primeira foi a retirada do ‘livre convencimento’ pelas razões aqui sintetizadas. A segunda foi a instituição ou positivação de critérios de estabilização jurisprudencial, observando-se coerência e integridade nos posicionamentos e, quando for haver modificação, a possibilidade de as partes se manifestarem antes (arts. 926 e 927, §2º).

nota 01 Analista Judiciário e Assessor de Juiz Membro do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás.

nota 02 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

nota 03 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

nota 04 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

nota 05 A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUÇÃO (Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1991)